domingo, 5 de janeiro de 2020

CONTOS EXEMPLARES

“Contos Exemplares” de Sophia de Mello Breyner Andresen
Fonte: Revista Caliban

1ª Parte
A publicação de hoje tem uma dupla intenção.
Emprimeiro lugar, efectuar uma abordagem linguística, em termos comparativos, aos textos correspondentes à terceira edição de Contos Exemplares de 1970 pela Portugália Editora (a qual inclui, pela primeira vez, o conto “Os Três Reis do Oriente”), prefaciada pelo Bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes; e a edição de 2014, publicada pela Assírio & Alvim, reimpressa em 2015, com prefácio de Federico Bertolazzi.

Em segundo lugar, pretende-se encetar uma abordagem literária dos textos desta colectânea de ficção curta de Sophia Andresen, em diálogo inter-textual com os de outra colecção, também de sua autoria, e igualmente destinados ao público adulto, os quais já havíamos antes abordado: Histórias da Terra e do Mar.
Comecemos então por contextualizar os textos, na época em que foram produzidos, e as suas influências literárias.
António Ferreira Gomes escrevera o prefácio para estes Contos Exemplares que viria a ser incluída na terceira edição do Livro, publicado já depois do seu falecimento. Ferreira Gomes intitulou esse texto de “Pórtico”, como se as suas palavras marcassem a entrada para um templo da antiga Grécia Clássica, neste caso o conjunto dos textos de Sophia, publicados nesta colectânea, cada qual como uma sala desse mesmo templo. Mas antes de mais, este “Pórtico” funcionou sobretudo como a defesa desses mesmos textos, orientado a leitura de possíveis censores com vista a impedir mutilações nos contos ou mesmo o banimento total do livro. Ferreira Gomes focalizou assim a atenção na componente cristã e nas frequentes intertextualidades destes contos de Sophia, num primeiro plano, com os textos bíblicos e, depois, com outros autores clássicos da literatura universal como Cervantes, Goëthe ou Hölderlin frequentemente aludidas no discurso narrativo sophiniano, os dois últimos, sobretudo no campo da poesia. A evidente intenção de desviar as intenções censórias destes contos de Sophia ligava-se à possibilidade real de estes conterem uma forte componente de crítica social ao sistema e ao regime político do Estado Novo, como é tão evidente, por exemplo, logo na primeira história “O Jantar do Bispo”, mas também e, “Retrato de Mónica”, “O Homem” ou mesmo “Os três reis do Oriente”, prefaciado por José Saramago aquando da sua primeira edição.
Em “Pórtico”, Ferreira Gomes utiliza sofisticado estratagemas retóricos para valorizar os textos e iludir os censores: começa por desvalorizar, logo na página IX, 1 os autores do movimento modernista e o seu estilo fracturante, relativamente a aspectos formais de desenvolvimento de uma narrativa a qual, nas suas palavras, teria de ser respeitada por todo e qualquer texto literário que ambicionasse adquirir o formato de conto propriamente dito: “nestes tempos de literatura (…) sem heróis, sem personagens, sem enredo, sem desfecho…”2 contrapondo em seguida coma s histórias sophinianas que obedeceriam, supostamente a todos estes requisitos. Por outro lado, Ferreira Gomes enquanto fazia esta desvalorização dos autores pertencentes ao movimento modernista do qual Sophia Andresen e muitos dos seus contemporâneos eram herdeiros, colocava estes Contos Exemplares no extremo oposto a esta corrente. Por outro lado, enfatizava a componente moralizante do adjectivo “Exemplares” presente no título, situando a escrita de Sophia Andresen também no pólo oposto à da corrente existencialista, que era na altura diabolizada pelo regime. Colando o seu discurso e o estilo literário de Sophia a Cervantes, a Hölderlin, a Heidegger e a Rilke, e outros nomes incontornáveis da literatura universal, Ferreira Gomes reforçava, cumulativamente, a componente ética e estética de base humanista e cristã da autora, tornando-a e aos seus textos acima de qualquer suspeita. O falecido Bispo do Porto servia-se, assim, do seu ethos de autoridade como voz representativa da ICAR para assegurar a publicação integral das histórias contidas no livro. Mas só quase ao fim de 50 páginas de um longuíssimo prefácio, cheio de artifícios retóricos, entrava, finalmente, na análise dos contos incluídos nesta publicação estabelecendo, por exemplo, um interessante visão paralelismo entre o conto “A Viagem” e a terceira parte de Also sprach Zaratustra do nihilista Friedrich Nietzsche, para demonstrar também a maneira como a formação cristã de Sophia se inscreve na construção do retrato de figuras arquetípicas ou socialmente representativas a fim de tipificar categorias sociais não apenas servidoras do Criador ou as forças do Bem mas também o seu oposto: o Príncipe deste Mundo e seus aliados, numa alegoria do materialismo ou das forças do Mal, os quais personificariam na perspectiva exposta no texto do Bispo do Porto, aspectos da cultura universal e não um ataque directo ao regime da ditadura do Estado Novo. Seriam algumas destas personagens arquetípicas figuras como a de Mónica (“Retrato de Mónica”) ou o Dono da Casa (“O Jantar do Bispo”) em oposição a João e o Primo Pedro (“O Jantar do Bispo”), o desconhecido rosto da fome acompanhado pela criança em “O Homem” .
Já o prefácio que serve de introdução a Contos Exemplares na edição da Assírio e Alvim de 2014 (reimpressão de 2015) da autoria de Federico Bertolazzi apresenta um teor discursivo completamente diferente deste que acabámos de descrever: numa escrita bastante mais despojada, o discurso de Bertolazzi constrói-se já não com uma intenção de persuadir, mas para adoptar antes um teor mais expositivo ou explicativo: começa por contextualizar a obra no tempo em que foi escrita e a desvendar a intenção da autora ao escrever contos que classifica de “exemplares”, em claro diálogo com as Novelas Ejemplares Cervantinas que Sophia Andresen cita logo em epígrafe, no início da obra, como já havia feito Ferreira Gomes, mas de uma forma bastante mais sintetizada. Bertolazzi continua depois a explicação da obra, apontando para a sua ligação com diversos outros textos literários, sem deixar de explorar a vincada vertente de crítica social e política do discurso sophiniano implícitas nos contos desta colecção, cuja importância o anterior prefaciador havia tentado desvalorizar.
É incluído também nesta edição o prefácio de José Saramago ao conto “Os Três Reis do Oriente”, que havia sido apenas publicado na primeira edição desta história publicada separadamente dos outros contos e apenas incluída em Contos Exemplares a partir d sua terceira edição.
ANÁLISE LINGUÍSTICA e LITERÀRIA de CONTOS EXEMPLARES
I — ANÁLISE LINGUÍSTICA DOS CONTOS
Passemos, pois, à analise linguística das alterações aos textos de ambas as edições: Portugália Editora, 8ª edição 1970 e individualmente Assririo & Alvim — Porto Editora 2014, reimpressão 2015: primeiro, dando conta das modificações textuais entre uma edição e outra e, em seguida, ao aspecto discursivo e literário, sinalizando as ligações dialógicas com outros textos literários e e discursos de outras personagens no volume Histórias da Terra e do mar.
“O Jantar do Bispo” surge nesta colecção como o conto mais longo. Com quase cinquenta páginas é a narrativa ficcional possuidora da intriga mais completa do volume. Passemos pois a elencar o conjunto de discrepâncias linguísticas entre a oitava edição, da Portugália Editores e esta mais recente, a décima quarta, a cargo da Editora Assírio & Alvim (Com a ressalva de não termos ainda analisado a mesma obra na edição das Figueirinhas, para verificar que alterações se repetem ou quais foram introduzidas unicamente nesta edição).
1.1. Conseguimos identificar um total de treze alterações só no conto “O Jantar do Bispo”. Algumas delas parecem ter sido introduzidas com vista ao aperfeiçoamento da qualidade do texto (possivelmente efectuadas pela autora, ainda em vida), mas outras tratam-se nitidamente de gralhas, o que prejudica indubitavelmente a qualidade desta edição, como se pode ver a seguir.
a) “A meio da fachada [que dava para o pátio]”; (1970:7). O segmento entre parêntesis rectos aparece suprimido na nova edição a fim de eliminar uma redundância que surge mais adiante, na 3ª edição.
b) [“É um azedo — comentou em família”]; (1070:13). Aqui, dá-se a supressão do segmento na edição actual, afim de resultar numa melhoria da qualidade estética do texto, pela eliminação do juízo de valor de uma personagem pela outra. Na versão mais recente a opinião do Dono da Casa acerca do primo fica implícita nas entrelinhas.
c) “Porque ele costumava citar”; (1970:13). Na nova edição ocorre a substituição do verbo “citar” por “dizer”, aligeirando o carácter professoral ou doutoral do locutor.
d) “…que era viúva e centenária”; (1970:17). O segmento da frase está, originalmente, entre vírgulas, que desapareceram na nova edição. A supressão das vírgulas acelera o ritmo do discurso.
e) “Ele parecia viúvo da sua própria vida, exilado, ausente, separado de tudo, construído o seu ser à margem do vivido.
Será possível que ele um dia acorde e venha a participar de novo na obra erguida em comum? Ou será que o passado corta todos os seus gestos com a pequena faca — tão caseira — da saudade? Será possível que ele regresse à história e reconheça a vida como criação e aventura, acto de esperança e alegria?”; (1970:22). Este trecho, de questionamento filosófico compreende as várias hipóteses explicativas da atitude do Primo Pedro perante a vida. É eliminado na nova edição (supõe-se que pela autora, antes da sua morte em 2004) e substituído por:
“Ou seria ele um espírito tecido de destruição, descrença e ironia? Ou seria que a sua rejeição significava uma vontade de despojamento, uma renúncia quase metafísica”; (2015: 58). A segunda versão surge-nos mais especulativa, perscrutadora e não tão judiciosa quanto a primeira, onde se percebe que o primo frustra as expectativas dos outros em relação a si mesmo e ao caminho que escolhe trilhar.
f) “Gente que era a sua base e cujo voto nunca lhe faltava”; (1970: 25); enunciado referente ao Dono da Casa, suprimido na versão mais recente, permitindo aos leitores efectuar o trabalho de avaliação do ethos de poder da personagem, extraindo por si próprios, um aspecto de sua personalidade que passa agora ao domínio do implícito.
g) “E enquanto os faróis iluminavam ao longe as curvas da serra, pensou”; (1970:30). Na versão actual há uma ligeira modificação: “E enquanto os faróis iluminavam ao longo das curvas da serra, pensou”; (2015: 64). Neste caso, ao contrário do que parece ter acontecido nas alíneas anteriores, é de crer que se trata de uma gralha, a qual altera consideravelmente o sentido do texto. Ao lermos a frase inserida no contexto pensamos que a primeira versão será a correcta, pois faz mais sentido as curvas da serra serem iluminadas ao longe, e não ao longo. A não ser que a autora quisesse referir-se às curvas da estrada (que estavam nesse momento a ser percorridas pelo automóvel que transportava o bispo). Mas se fosse este o caso, a autora teria muito provavelmente utilizado o gerúndio.
h) Já a alteração que se segue é indubitavelmente uma reformulação: “Daí a instantes, o automóvel do Bispo atravessou o portão e os faróis iluminaram de frente a bela escada de granito” (1970:30), que é substituída por “Daí a instantes o Bispo chegava à casa, o automóvel atravessou o portão e os faróis iluminaram de frente a bela escada de granito.”; (2015:64).
i) “Ele estava fechado na certeza de si mesmo”; (1970:71). Este enunciado é alterado para “Ele estava fechado na certeza dos seus direitos.”; (2015:96).
Trata-se, evidentemente de uma reformulação. As frases não são, contudo sinónimas, mas implicam coisas diferentes: na edição de 1970, a “certeza de si mesmo” é mais abrangente do que a “certeza dos seus direitos” na versão mais actual. A primeira versão mostra um homem convicto não apenas dos seus direitos mas com fé absoluta nas suas convicções, do seu ponto de vista, dono absoluto da Verdade. Na versão de 2014/2015, por seu turno, a expressão que substitui a versão de 1979 tem um âmbito mais específico: a inquestionabilidade da sua posição social, institucionalmente suportada pelo sistema político e pela estrutura social. Se na primeira versão está implícito o pensamento totalitário, que não admite oposição, ou pensamento divergente, a outra traduz um imobilismo social que parece teimar em permanecer transversal à mudança de regime (daí provavelmente a alteração da frase pela autora já no período pós-ditatorial).
j) “Finalmente o Bispo, o Dono e a Dona da Casa, o criado António, Júlia, a criada da sala, reunidos pelo espanto, comentavam o sucedido.”; (1970:75).
O segmento sublinhado é substituído na versão actual por:
“Terminada a busca, o Bispo, O Dono e a Dona da Casa, o Criado António, Júlia, a criada da sala, e Mariana, a criada dos quartos, reunidos pelo espanto, formaram um círculo na sala, comentando o sucedido.”; (2015:99).
A alteração do enunciado de uma versão para outra tem, aqui, também implicações na forma como o alocutário (o leitor ou ouvinte) recebe, processa e interpreta o que sucede com as personagens naquele instante: enquanto no primeiro caso o advérbio de modo dá a ideia de conclusão de um processo, no segundo caso é definido um momento específico, exacto que marca o começo da reunião. Além de na segunda versão ser mencionada mais uma personagem, Maria, a criada dos quartos. Ao ser aumentado o número dos participantes da reunião esta toma um formato diferente nesta segunda versão. Além de mais numerosa, a reunião passa a ter tem um carácter mais organizado (os elementos são dispostos em círculo), como se fosse uma reunião de condomínio ou de uma comissão de trabalhadores com os patrões. Ao passo que, na primeira versão, as pessoas se limitam a comentar os acontecimentos mas dando a ideia de o fazerem de forma mais casual e não propriamente em grupo organizado.
l) Na frase “Ou talvez o Diabo a tenha levado”; (1970:78) a palavra sublinhada é substituída por
“Ou talvez o diabo a tenha levado”; (2015:101).
Neste caso, deu-se a supressão da maiúscula, que será, talvez, um sinal dos tempos, com o surgir de uma era de maior laicidade e menos medo do sobrenatural. A minúscula aqui vem sublinhar um tempo menos propiciador de um terror supersticioso, passando antes a ser encarada a figura do diabo como uma categoria abstracta, um protótipo do mal, sim, mas sempre ligado a factores muito terrenos e materiais.
m) “Só sei que parece que entrou o Diabo nesta casa”; (1970:78).
Na frase, da nova edição, a palavra sublinhada dá lugar a:
“Só sei que parece que entrou o demónio nesta casa”; (2015: 102).
Neste caso, já não é apenas a maiúscula que desaparece, mas a palavra “diabo” (adversário) que é substituída pela palavra “demónio”, força do mal a causar desestabilização, desconfiança.
2. Análise Literária dos Textos
Identificadas as discrepâncias linguísticas entre ambas as edições, passemos então à análise literária dos contos de ambas as colectâneas em diálogo inter-textual.
(Continua)
1 Da 3ª ed. 1970, Portugália Editora
2 Idem
Cláudia de Sousa Dias

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