«A invenção de nós em José Mário Branco
GONÇALO FROTA 20/06/2014 - 05:00
A Casa da Música homenageia José Mário Branco – com JP Simões, Batida, Mão Morta, e outros... Procurámos o que representa JMB para músicos, poetas, ilustradores – porque também há o livro 40XAbril.
Num tom de rap eriçado assente em ritmos tradicionais portugueses, José Mário Branco apresentou em 2007 na Casa Música (Porto) – e um ano depois na Culturgest (Lisboa) – a sua última criação conhecida em nome próprio. Mudar de Vida recuperava esse verbo activo na poética de insubmissão do músico que, em 1971, foi buscar Camões para chamar ao seu disco de estreia Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades. Era esse verbo de rejeição mas de criação de um novo paradigma que o encontrava ainda José Mário Branco, “português, pequeno burguês de origem, filhos de professores primários, artista de variedades, compositor popular e aprendiz de feiticeiro” ainda “muito mais vivo do que morto”, como antes se dissera na estonteante declamação catártica de FMI no Teatro Aberto, em 1982. Mudar de Vida, assim descreve o músico no documentário com o mesmo nome realizado por Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo estreado no IndieLisboa, avançava em três movimentos: primeiro, um olhar para dentro, uma análise pessoal, uma procura de estabelecer o seu lugar no mundo; depois, sabendo já onde os pés se enterravam, vinha a interpelação ao próximo, questioná-lo, perguntar-lhe que lugar é esse que ocupa, se por inércia ou vontade própria; finalmente, a procura de um sentimento comunal, de recusa de um sistema, de um capitalismo em roda-livre, sem rei nem roque, desregrado, impossível de manobrar, irracional.
No texto de Mudar de Vida, citava a história de Paul Ehrlich, bacteriologista alemão cuja investigação seria determinante para a descoberta de um tratamento eficaz para a sífilis. Conta José Mário que, após centenas de tentativas, descobriu forma de matar a doença mas também o doente e terá chamado ao tratamento Ehrlich 606. Chegado à tentativa Ehrlich 914 conseguiu o seu propósito – matar, sim, mas com critério, poupando o doente. “E nós, tentámos quanto?”, perguntava José Mário, acusando a humanidade de ter desistido de lutar por uma transformação social capaz de promover uma fórmula mais justa, mais fraterna de mediar as relações entre as pessoas. Foi, em parte, esta imagem de resistência idealista a levar JP Simões a gravar em 2007 a sua versão de Inquietação. “As canções do José Mário Branco acabaram por ficar muito marcadas numa altura da nossa vida portuguesa, que se calhar era muito celebrada, mas em que a sua voz era uma espécie de decepção meio chateada dos anos 80 – a porra da revolução não tinha ido para lado nenhum.” Por isso, acredita JP, José Mário “vacilava entre um apelo às armas – fossem intelectuais ou da união – e uma certa resistência, como se a orgânica que faz as coisas acontecer e mudar fosse superior à nossa vontade”.
JP Simões é um dos músicos desafiados pelo jornalista/radialista Rui Portulez para o concerto De Certa Maneira, uma homenagem a José Mário Branco que sexta-feira toma conta da Casa da Música, no Porto. Para Portulez, JP é “um seguidor natural, não tão duro e corrosivo quanto o Zé Mário, mas também com uma costela crítica e alguma ironia”. Do espectáculo constarão ainda os contributos de Chullage, Miguel Pedro e António Rafael (Mão Morta) em colaboração com os Ermo, Batida (acrescentados de Manuel Pinheiro, dos Diabo na Cruz, e AF Diaphra), Guta Naki, Marfa e Gambuzinos, cada um responsável por um par de versões do cancioneiro do homenageado. A que se juntará, no final, o actor João Grosso na declamação de FMI. A ideia surgiu a Portulez em 2013 por uma série de razões. “Uma delas foi porque acho que todos sentimos que o país bateu no fundo. E não há reacção.”
Há, portanto, um propósito agitador na ideia de Portulez celebrar a obra de José Mário Branco num ano em que se cumpre o 40º aniversário do 25 de Abril. A efeméride interessava-lhe também e parecia-lhe possível e preferível festejar a liberdade para lá das sessões solenes na Assembleia da República “para cumprir calendário e picar o ponto”. Mudar de Vida, o filme, convenceu ainda mais Portulez de estar na presença de alguém cuja pertinência artística era sublinhada por um activismo convicto e enérgico “contra a invasão do Iraque, aprendendo com os timorenses a sua noção de resistência”. As razões eram coincidentes com aquelas enunciadas por Nelson Guerreiro para avançar para o documentário: “a criação musical, a prática social, o humanismo, a riqueza poética, o apelo à mudança”.
“Há uma certa tendência para a resignação na nossa cena portuguesa e ele aparecia sempre em contraste com isso, concentrou toda a força, o heroísmo e a indignação da resistência quando o país se foi aburguesando”, comenta JP Simões. Também nesse sentido, Pedro Coquenão, do projecto Batida, afirma que José Mário Branco “representa integridade, intemporalidade, a liberdade criativa e do tempo”. “Representa a memória de uma certa época, mas também o presente. Gosto de pensar que ele não cede na forma, não facilita no conteúdo. Não faz do nome a solo um culto ao seu ego, mas a ideias.” Este regresso a Mário Branco representa também um bastião a que toda uma nova geração parece agarrar-se na esperança de manter vivo um sentido de liberdade que consta do significado de 25 de Abril.
Na estreia de Mudar em Vida no IndieLisboa José Mário Branco far-se-ia representar por aquilo que Portulez descreve como “uma declaração violentíssima sobre o seu desencanto em relação ao país e à política”. “Comemorar o quê?”, questionava-se sobre o aniversário do 25 de Abril, argumentando que “o trono” estava agora nas mãos de “filhos de Cavaco e netos de Salazar”. No encontro com Portulez em que este lhe apresentou a ideia de concerto, o músico pediu-lhe que não acontecesse em Abril. Portulez concordou. E só então José Mário acedeu. Como que disponibilizando-se, cautelosamente, a ser salvo da sua desesperança.
A busca dos cravos
De Certa Maneira, o concerto, não é filho único. Em Maio, juntando esforços aos de João Paulo Cotrim, da editora Abysmo, Rui Portulez publicou 40XAbril, resultado de um convite endereçado a 20 poetas e outros tantos ilustradores para, aí sim, comemorar a efeméride, sugerindo que FMI, de José Mário Branco, pudesse correr em fundo. Para a poetisa Margarida Vale de Gato a escolha do texto seria fácil, ainda que desligada desse “ser persistente, combativo e curioso pós-Abril, ao contrário do país”, que identifica em José Mário. Na véspera do 25 de Abril de 2013, após correr floristas em busca de cravos (os próprios símbolos parecem arredios), encontrou consolo no quarto florista a que se dirigiu e passou a história para o poema “A história foi enormemente exagerada”, em que também ela se define como uma “democrática defraudada”. “Não alterei o poema para servir ao José Mário Branco, que não precisa da ratificação da minha poesia para nada. Relendo-o, vejo que abordo nele o ‘sentimento de classe’, algo para que o Zé Mário Branco me despertou a atenção e o questionamento numa altura, há um par de anos, em que mantive com ele uma correspondência sobretudo produtiva para mim”, diz.
A também poetisa Inês Fonseca Santos, que se lembra de repetir de forma quase inconsciente versos de José Mário e Sérgio Godinho se, na infância, “andasse na rua todo o dia, em liberdade, a saltar muros, a apanhar ameixas e a descer morros de bicicleta”, mordeu convictamente o isco do mote. “O tom talvez seja devedor doFMI”, admite, não fazendo da palavra “devedor” um mero acaso. De facto, na carta ao 25 de Abril que é Remessa Livre, também ela segue o exemplo de José Mário, aproveitando o texto para se apresentar – como “uma burguesa endividada, uma nobre de brasão no prego”. Também a ilustradora Mariana, a Miserável, com “tendência para falar sobre outras misérias da vida”, agarrou prontamente em FMI, resgatando o slogan “não há força que retorça o FMI”. “Naqueles vinte minutos de texto genial há pano para mangas”, acredita. “Podia fazer da música um livro inteiro, mas acabei por construir uma analogia entre o FMI e a conhecida caixa de papas Cerelac, na qual normalmente figura uma família feliz e bem alimentada”. A mãe, no traço de Mariana, passa a ter contornos sinistros, distribuindo uma porção miserável por oito filhos pendentes da sua vontade. O descritivo do produto, que as embalagens costumam dedicar à nomeação de ingredientes ou ao modo de preparação, diz apenas: “dida didadi dadi dadi da didi” – propositadamente incompreensível.
Foi também o FMI dos Ermo, ligando o passado de 1982 ao tempo presente, a levar que Miguel Pedro e António Rafael, dos Mão Morta, propusessem uma actuação a quatro na Casa da Música. Miguel Pedro, que descobriu José Mário Branco na infância porque “passeava muito de carro com um tio que tinha uma daquelas gavetas de guardar cassetes cheia de cassetes de cantores de intervenção”, colaborou com o autor de Inquietação no espectáculo Então Ficamos, no encerramento de Guimarães 2012. Não entendendo a forma musical do seu grupo como de protesto, alega que “o real em Mão Morta é olhado de forma abstracta”. Mas, recupera Inês Fonseca Santos dos poemas de Manuel António Pina, “a realidade é uma hipótese repugnante”. “Temos, pois, o direito de lhe resistir”, acrescenta. “E as canções expressam essa vontade de resistência. Mesmo que se defenda agora que não passam de símbolos, movimentam-se num espaço em que é possível ouvir ainda as vozes dos que não desistem.” Defende ainda o regresso a essas canções “repetindo-as aos mais velhos para que não esqueçam, nem esmoreçam” e “partilhando-as com os mais novos para que não julguem a que a rasura da liberdade é uma ficção ou uma doença a que estamos imunes”.
“Como artistas, e se tudo correr bem, seremos protestantes e provocadores constantes. E como pessoas, cada um pela sua cabeça, contribuindo para o todo”, argumenta Pedro Coquenão. JP Simões reforça esse chamamento plural ao afirmar que “no Zeca e no Zé Mário há uma invenção do nós”. “A sua voz fala de uma coisa que parece cada vez mais longínqua – consciência colectiva. E o que nos une são as tecnologias de comunicação para não dizermos uma ponta de um corno uns aos outros.”
Esse pilar cristão de amor ao próximo que José Mário Branco defende como alicerce da resistência, ecoa no lamento de Margarida Vale de Gato, que nunca chegou a agradecer o consolo oferecido pelo último florista, obrigado a fechar o estabelecimento pouco depois de o poema estar escrito. Por isso, a poetisa diz que vai continuando a comprar uma guerra em que, ao contrário do discurso político vigente, há alternativas. E remata: “Quem diz que não há alternativas é porque não sabe ler.”»
Fonte: Público
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