segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

THE LAST SOVIET GENERATION

ENTREVISTA
O sistema é para sempre até acabar
Para os russos, o fim do sistema soviético foi uma surpresa e ao mesmo tempo não foi. O antropólogo russo Alexei Yurchak chama a esses últimos tempos hipernormalização. Será que se passa hoje o mesmo com o capitalismo? Terão algumas das receitas do socialismo de regressar?

ALEXANDRA PRADO COELHO  8 de Janeiro de 2017, 9:02

O antropólogo russo Alexei Yurchak, professor na Universidade de Berkeley, na Califórnia, e autor do livro Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation [Tudo foi para sempre, até não o ser mais: a última geração soviética] vai estar em Portugal para duas conferências.

A primeira será no ciclo Utopias no Teatro Maria Matos, em Lisboa (dia 12 às 18h30, entrada livre) e Yurchak discutirá o conceito de hipernormalização – algo que implica ao mesmo tempo uma identificação e um distanciamento irónico – que aplicou aos últimos tempos da União Soviética e que o realizador Adam Curtis recuperou no ano passado para o seu filme HiperNormalização, associando-o ao pensamento liberal e ao capitalismo.

A segunda conferência, com o título Bodies of Lenin e centrada no corpo embalsamado do líder comunista, acontece dia 13, às 18h, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e também com entrada livre.

Que processo psicológico levava as pessoas a acreditar, nos últimos anos do regime soviético, que este seria eterno? Em que se baseava esta crença?
Sou antropólogo e tenho muita relutância em usar termos como “processo psicológico” e “crença”. Essa linguagem é perigosa e muitas vezes não representa a realidade de forma correcta. Prefiro falar de processos sociais. Além disso, assume-se no Ocidente que o sistema soviético era esse enorme e opressivo aparelho de Estado e que as pessoas que viviam nele eram oprimidas. Na sua pergunta diz “regime soviético” e esse termo baseia-se numa assunção muito problemática. Não se fala de regime português hoje, pode-se falar do regime de Salazar, mas no de hoje não. Não se fala do regime de Obama a não ser que se seja ultradireita. Temos de ter muito cuidado com o tipo de etiquetas que usamos porque assumimos a resposta à pergunta antes mesmo de a ouvirmos. Não penso que seja uma boa maneira de caracterizar o Estado soviético e, definitivamente, não era assim que era vivido pelas pessoas na altura.

A palavra regime tem sempre uma dimensão negativa?
Não necessariamente. Em ciência política quando se fala de regime queremos dizer sistema. Mas quando se usa o termo no Ocidente relativamente à União Soviética tem, normalmente, uma conotação negativa. Assumimos que as pessoas viviam num regime opressivo e que acreditavam que seria eterno. Não era assim.

As pessoas viam-no como um sistema muito normal, com muitas coisas problemáticas, claro, as liberdades eram limitadas em alguns aspectos mas não noutros. Podiam seguir as suas carreiras, serem médicos, cientistas, advogados, etc., planear as suas vidas e estavam de acordo com muitos valores socialistas, mesmo que não gostassem de coisas que o partido fazia.

Quando as pessoas são hoje nostálgicas do tempo soviético é desses valores, de relações que não eram baseadas no dinheiro. Na União Soviética o dinheiro não era o principal indicador do valor humano como é hoje nos EUA.

Se sentiam o sistema como eterno era porque se identificavam com algumas dessas coisas. E, em segundo lugar, porque ele se baseava numa retórica do futuro. Tudo era orientado para uma ideia de progresso para um socialismo melhor. Não era preciso acreditar nela para se ser constantemente integrado nessa retórica do futuro, algo que não é muito comum no Ocidente hoje ou na Rússia de hoje.

Outro dado importante aí era o facto de toda a gente participar. As pessoas iam a todas as eleições e participavam nas instituições sem, necessariamente, se preocuparem muito com o significado que tudo isso tinha ou em quem votavam, porque havia apenas um candidato.

Mesmo quando as pessoas criticavam aspectos do sistema, não significava que fossem contra o socialismo e os seus valores. Não tinham forma de questionar as coisas nesses termos, não porque tivessem sofrido uma lavagem ao cérebro, mas porque esses valores são valores humanos.

Isso acontecia porque já tinham nascido dentro do sistema?
Não, não era por isso. O facto de se nascer num sistema não significa que ele seja dado como adquirido.

Estava a pensar na Coreia do Norte, por exemplo.
Está novamente a comparar o sistema soviético a um regime fechado e opressivo, como se as pessoas tivessem nascido numa prisão e não conhecessem mais nada. Isso é uma forma muito ideológica de entender a realidade soviética, que é dominante no Ocidente, mas que é errada. Porquê fazer esta comparação? É uma forma muito simplista de pensar. Eu vivi nesse sistema, as pessoas não tinham sofrido uma lavagem ao cérebro, conheciam muitos outros regimes, podiam ser críticos em relação a muitas coisas e não eram levadas a pensar que aquela era a única maneira possível de se viver.

O que eu queria com esta pergunta era perceber se o que descreve no seu livro pode ser comparado com a forma como vivemos hoje no sistema capitalista e liberal e se o sentimos como única possibilidade de organização do mundo.
Mas veja por exemplo em Portugal, há pessoas que nasceram num regime ditatorial, ou nos EUA, há pessoas que tiveram a experiência de um regime muito diferente durante a guerra. Não é correcto pensar que não conhecemos mais nada. Claro que até um certo ponto quando se nasce num sistema podemos começar a dá-lo como adquirido, mas não julgo que essa seja a única razão. O natural é questioná-lo, mais do que dá-lo por adquirido.

Explica no seu livro que as pessoas estavam de certa forma desligadas do sistema, numa posição que não sendo de oposição acabou por mudar o regime por dentro. É isso?
As pessoas não viam a vida soviética como um grande regime ao qual se opunham. Mas o significado de algumas coisas que faziam era diferente do significado que o partido lhes atribuía. Votavam sem se preocupar muito com o verdadeiro significado mas dando muita importância ao facto de estarem a participar. Votar era mais importante do que em quem votavam. E por vezes vejo isto nos EUA. Há uma profunda convicção nos EUA de que é muito importante participar nas eleições porque elas são a base da democracia. Por isso põem autocolantes na roupa a dizer “eu votei”. Era assim com os soviéticos. Faziam coisas que iam contra a retórica do partido, sem contudo a questionarem directamente. O que tento fazer no livro é identificar muitos destes novos significados que surgiram na URSS, esse novo mundo.

Que começou nos anos 70?
Começou em meados dos anos 50, depois da morte de Estaline, mas na década de 70 tornou-se muito mais vasto.

E acabou por levar ao fim do sistema?
Afectou-o de uma forma muito interessante. Reproduziu a experiência de total estabilidade, mas ao mesmo tempo fez com que ele se transformasse por dentro. Quando Gorbatchov introduziu reformas, em meados dos anos 80, pensou que ia reformar o socialismo mas este já tinha mudado tanto por dentro que começou a colapsar.

O que causou o fim do regime foram essas reformas de Gorbatchov. Antes, tudo era controlado ideologicamente e não podia haver um debate público aberto sobre como a vida era organizada. Quando a perestroika permitiu esse tipo de discurso, as coisas já tinham mudado. A possibilidade dessa discussão pública sobre a distância entre representação e realidade foi o que destruiu o sistema.

Tudo se tornou subitamente visível porque se podia falar sobre isso.
Exactamente. Mas se não tivessem surgido as reformas o sistema podia ter continuado como era durante muito tempo. Não porque as pessoas fossem estúpidas ou loucas, mas porque não havia forma de se focarem nessa representação errada.

E isso criou a dupla reacção de que fala no livro: o fim do sistema surpreendeu as pessoas, por um lado, mas por outro receberam-no como algo que, no fundo, sabiam ser inevitável.
Foi uma surpresa inicialmente. E muito rapidamente. Quando em 1990, 91 o sistema começou a desfazer-se, era já evidente que não podia ser de outra maneira. As pessoas aperceberam-se de que sabiam uma coisa mas não estavam conscientes de que a sabiam.

Há um lado psicológico nisto, não?
Tudo é sempre psicológico. Mas não descrevo assim este tipo de fenómenos porque isso nos leva à discussão sobre o que está dentro da cabeça das pessoas e há instituições e factores sociais que são mais importantes. Claro que as pessoas têm ideias muito complexas na cabeça mas não é essa a razão da mudança. De repente percebem uma coisa e vão para a rua protestar, não é assim que funciona.

O debate nos media sobre as revoluções populares na Europa de Leste está totalmente errado. Aconteceram porque a URSS introduziu estas mudanças. É por isso que não gosto de lhes chamar revoluções. Há esta retórica no Ocidente sobre os povos heróicos que se opuseram a regimes horríveis. Isso é uma simplificação muito grande.

No entanto, mesmo quem vivia na União Soviética começou a contar um pouco essa história, de oposição e resistência, depois do fim do sistema, não?
Havia um movimento dissidente mas eram poucas as pessoas que se interessavam por ele e não foi uma parte importante na mudança. É verdade que se tornou importante, sobretudo nos anos finais da perestroika, cada um sublinhar que tinha sido sempre um inconformista – uma palavra que ninguém usava no tempo soviético. As pessoas reescrevem sempre a história, acontece em todo o lado. Torna-se importante dizer que se foi pessoalmente contra o Estado.

Isso foi influenciado também pela forma como o Ocidente olhava para a URSS...
Sim, foi influenciado pela retórica da Guerra Fria e da Rússia pós-soviética, demonizando o passado soviético. Quando publiquei o meu livro na Rússia, há dois anos, muitas pessoas sentiram-se libertas pelo facto de eu prestar atenção a isto. Disseram que, antes, não podiam falar do passado de uma forma mais complexa, tinham sempre que dizer que eram contra.

O seu livro [editado inicialmente há dez anos nos EUA] tem sido muito falado recentemente porque o conceito de hipernormalização está a ser aplicado a outros casos, nomeadamente ao capitalismo e liberalismo, como faz Adam Curtis no documentário a que deu precisamente o nome de HiperNormalização. Subscreve essa perspectiva?
A recente onda de interesse surgiu depois desse filme, apesar de Adam Curtis nunca mencionar o meu nome. A questão aparece um pouco simplificada no filme. Ele diz que as pessoas sabiam que o sistema era “falso” mas fingiam que não era. Eu sou completamente contra essa ideia de “falso” e “verdadeiro” porque é muito simplista.

Mas concorda com a comparação com o capitalismo?
Sem dúvida. O discurso político no Ocidente, em particular nos EUA, tornou-se hipernormalizado. Uma forma muito particular de retórica política é repetida uma e outra vez sem significar exactamente o que parece dizer. Para se ser político é preciso repeti-la. Repete-se, por exemplo, a ideia do “espalhar a liberdade” e a partir daí podem-se lançar guerras no Iraque. Claro que o resultado é o caos completo mas a retórica política cria esta relação muito simples de democracia versus não-democracia, o mundo da liberdade contra o mundo da não-liberdade. Isto é uma hipernormalização do discurso e aconteceu sobretudo nos últimos 25 anos.

A queda da URSS foi uma das razões para isso. O “outro” comunista tinha desaparecido e o liberalismo sempre se pensara em relação a esse “outro”. Pensava em si mesmo como “livre e democrático” em oposição a algo que se apresentava como “não-livre e não-democrático”. Com o desaparecimento do comunismo tornou-se difícil teorizar o que significa ser livre.

O islão veio rapidamente preencher esse vazio.
Até certo ponto. E a Rússia hoje também. Há muitos actores diferentes que podem tentar preencher esse vazio, mas não o conseguem inteiramente porque não têm a mesma agenda política que o comunismo tinha – era o grande “outro” do capitalismo.

Mas há outras razões. Uma delas é a transformação dos media e da política em geral. A maioria dos jornalistas e órgãos de comunicação social estão a reduzir os departamentos de investigação e há uma pressão muito grande para produzir notícias 24 horas sobre 24 horas. O resultado é uma espécie de câmara de eco em que as coisas que vêm de muito poucas fontes são repetidas inúmeras vezes.

Há nisso uma semelhança com a situação soviética em que o partido controlava o discurso. Cria-se uma cultura do soundbyte.

Acha que não há debate público e que essas afirmações não são questionadas?
Não diria isso. A questão é onde é que isso é feito. É impossível questionar todo o sistema a esse nível. O que aconteceu com a eleição de Trump tem a ver com isso. As pessoas estão fartas do que vêem como uma fachada total na qual não acreditam e votaram no Trump não porque se tenham deixado enganar pela mensagem dele, mas porque procuravam alguém que conseguiu passar a imagem de ser de fora do sistema.

O Colbert Report e o Jon Stewart comentavam exactamente essa hipernormalização da linguagem e acção política. A popularidade deles é sinal de que muitas pessoas vêem isso. O que acontece realmente é que a redistribuição da riqueza nos EUA nos últimos 20 anos é escandalosa. Há um empobrecimento enorme da classe média e uma grande acumulação de riqueza nos mais ricos. E isso continua a acontecer sob a mesma retórica da democracia.

Não existe a percepção de que o poder não está nas mãos dos políticos mas de uma entidade mais difusa e por isso mais difícil de combater?
Os políticos e os capitalistas são vistos como um e o mesmo. Os políticos americanos são todos milionários. Os senadores não representam apenas o seu eleitorado mas as grandes indústrias, é um complexo político-capitalista que detém o poder. E eu teria cuidado com o uso da palavra poder. Não podemos dizer que na URSS o partido tinha o poder porque há um poder social mais difuso – as pessoas fazem coisas porque as outras fazem coisas e isso é poder.

Estamos então numa situação, como nos últimos anos da URSS, em que as coisas já começaram a mudar mas ainda não vemos isso?
Não se pode fazer uma comparação directa e não se pode prever um desfecho semelhante porque os sistemas são muito diferentes. Não penso que a democracia liberal nos EUA e na Europa vá colapsar da maneira que o sistema soviético colapsou. A grande diferença é que na URSS havia um partido que, segundo a Constituição, era a grande força guiando a sociedade para o futuro. Quando isso foi questionado, não havia solução para o sistema. Não podia ser reformado. Tinha que entrar em colapso. No Ocidente é diferente. O sistema não vai colapsar mas vai acabar por se transformar de forma muito substancial.

Há quem veja sinais do fim do capitalismo ou pelo menos de uma profunda crise do capitalismo.
Não me parece muito realista porque se trata de uma força global. Quando a URSS colapsou podia reformar-se tendo como modelo alternativo o Ocidente e a democracia liberal. Durante a perestroika os soviéticos idealizavam completamente o Ocidente. O Ocidente não tem neste momento outro sistema ao qual possa aspirar. Há quem se possa voltar para o islão, mas não será toda a gente.

Estamos então numa situação, como nos últimos anos da URSS, em que as coisas já começaram a mudar mas ainda não vemos isso?
Não se pode fazer uma comparação directa e não se pode prever um desfecho semelhante porque os sistemas são muito diferentes. Não penso que a democracia liberal nos EUA e na Europa vá colapsar da maneira que o sistema soviético colapsou. A grande diferença é que na URSS havia um partido que, segundo a Constituição, era a grande força guiando a sociedade para o futuro. Quando isso foi questionado, não havia solução para o sistema. Não podia ser reformado. Tinha que entrar em colapso. No Ocidente é diferente. O sistema não vai colapsar mas vai acabar por se transformar de forma muito substancial.

Há quem veja sinais do fim do capitalismo ou pelo menos de uma profunda crise do capitalismo.
Não me parece muito realista porque se trata de uma força global. Quando a URSS colapsou podia reformar-se tendo como modelo alternativo o Ocidente e a democracia liberal. Durante a perestroika os soviéticos idealizavam completamente o Ocidente. O Ocidente não tem neste momento outro sistema ao qual possa aspirar. Há quem se possa voltar para o islão, mas não será toda a gente.

Há espaço fora do capitalismo?
Há, mas é um espaço de pobreza, de guerra, de destruição. Mas essa não é a alternativa que procuramos, pois não?

Temos essa percepção apenas porque vivemos neste momento? Ou historicamente atingimos um ponto em que o sistema é de tal maneira global que é eterno?
Não acredito que alguma coisa seja para sempre. Não sei se o capitalismo acabará e outra coisa surgirá no seu lugar. Mas vai ter que mudar gradualmente. Não será um colapso porque não existe um outro mundo, com diferentes regras, que possamos introduzir no dia seguinte. Mas algumas das receitas do pensamento original dos socialistas terão que regressar.

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