sexta-feira, 18 de março de 2022

RÚSSIA - UCRÂNIA

O Mundo Ocidental: um império das mentiras?

Luís Gomes // março 16, 2022

O Mundo Ocidental: um império das mentiras?

Em Março de 2022, Vladimir Putin, o presidente da Federação Russa, afirmou que o “Ocidente é o Império das Mentiras”.

Certamente, o homem não terá razão. Mas, mesmo assim, por mera análise académica, vamos proceder a uma breve mas necessária cronologia dos factos.


A expansão da NATO

Em 1990, vários líderes ocidentais, como James Baker, Helmut Kohl, Margaret Thatcher, asseguravam aos soviéticos que a NATO nunca se iria expandir para o Leste; as palavras de James Baker, o então secretário de Estado norte-americano: “…não apenas para a União Soviética, mas também para outros países europeus, é importante ter garantias de que…nem uma polegada da actual jurisdição militar da NATO se espalhará para leste”.

Desde a queda o Muro de Berlim, apesar de todas as promessas em sentido contrário, a NATO expandiu-se para a Polónia, a República Checa e a Hungria em 1999; para a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Eslovénia, a Eslováquia, a Bulgária e a Roménia em 2004; para a Albânia e Croácia em 2009; para o Montenegro em 2017; para a Macedónia do Norte em 2020.

Hoje, a Rússia tem bases de mísseis apontados ao seu território a poucos quilómetros das suas fronteiras, não existindo algo semelhante, em termos de proximidade, em relação aos Estados Unidos.

Em 1997, em contradição com as promessas ocidentais, a NATO assina um acordo de cooperação de longo prazo com a Ucrânia, tendo como objectivo final a sua adesão.

Em 2002, é assinado um plano de acção entre a NATO e a Ucrânia, reafirmando o compromisso do estabelecimento de “laços mais estreitos” e delineando um plano de longo prazo para a implementação de “reformas” que tornariam aquele país adequado para a sua plena integração nesta organização.

Em 2008, a secretária de Estado norte-americana, Condoleeza Rice, e o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Volodymyr Ohryzko, assinam uma Carta de Parceria Estratégica Estados Unidos-Ucrânia, onde se “enfatiza o compromisso contínuo dos Estados Unidos de relação estreita entre a NATO e a Ucrânia”.

Em Fevereiro de 2008, Viktor Yanukovych, natural de Donetsk, venceu as eleições presidenciais e tornou-se o quarto presidente da Ucrânia eleito democraticamente, obtendo a maioria da sua votação na região leste do país, etnicamente russa; até a imprensa ocidental reconhecia a justeza do acto eleitoral: “Observadores internacionais elogiaram calorosamente a eleição…”.

Em Abril de 2008, na cimeira da NATO em Bucareste, assegurava-se que a Ucrânia e a Geórgia seriam membros da NATO. Em Junho de 2008, o parlamento ucraniano aprovou uma lei que impossibilitava a adesão da Ucrânia a qualquer bloco militar. A BBC lamentava o fim da caminhada da Ucrânia em direcção à NATO.

Em Agosto de 2008, o então presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, interessado na adesão à NATO do seu país, decidiu reincorporar duas regiões separatistas, a Abkhazia e a Ossétia do Sul. A Rússia, através de uma rápida intervenção militar, colocou um fim a esta aspiração, deixando claro que se opunha veementemente a uma eventual adesão da Ucrânia e Geórgia à NATO.


Golpe de Estado: A deposição de um líder democraticamente eleito

Em Março de 2012 surge a primeira versão do acordo de associação entre a União Europeia e a Ucrânia, prevendo-se a assinatura por Viktor Yanukovych no final de Novembro de 2013, na cimeira europeia na cidade de Vilnius, na Lituânia.

Em Outubro de 2012, o partido de Viktor Yanukovych venceu novamente as eleições, reforçando a sua maioria no parlamente ucraniano, onde, pela primeira vez, a extrema-direita marcava a sua presença, através do partido Svoboda, liderado por Oleh Tyahnybok, que obteve mais de 10% dos votos e elegeu 37 deputados.

A 21 de Novembro de 2013, o Governo ucraniano emitiu um decreto a suspender o acordo de associação com a União Europeia; o então primeiro-ministro, Yuriy Boyko, alertava para o prejuízo que representaria para a Economia ucraniana. A alternativa seria a União Aduaneira Euro-Ásia, onde a Economia russa tem um papel preponderante; as sondagens de então indicavam um país dividido 50/50. Dias depois do decreto, ocorreram as primeiras manifestações na Praça Maidan.

A 28 de Novembro de 2013, numa cimeira da União Europeia, Viktor Yanukovych não assinou qualquer acordo de associação, sugerindo um acordo trilateral, envolvendo a Ucrânia, a Rússia e a União Europeia. Esta proposta foi rejeitada liminarmente pela União Europeia. Anunciaram-se milhares de manifestantes na Praça Maidan; outros ocuparam a prefeitura de Kiev. Os políticos da oposição começaram a acusar Viktor Yanukovych de “traição”; alguns pediram a repetição da eleição presidencial, apesar de apenas 18 meses de distância da última.

A 29 de Novembro, os manifestantes apresentaram as suas exigências, uma delas a renúncia imediata de Viktor Yanukovych.

A 1 de Dezembro, os manifestantes iniciaram acções violentas, derrubando barreiras policiais. A polícia retirou-se da Praça Maidan; cerca de 200 pessoas ficaram feridas, incluindo uma centena de polícias.

A 2 de Dezembro, os manifestantes erigiram barreiras em redor da Praça Maidan, bloquearam o acesso a edifícios governamentais e tentaram assaltar o edifício onde se encontrava a equipa do presidente Viktor Yanukovych. Até o insuspeito Guardian dava conta do desaparecimento de cena da polícia! Ao mesmo tempo, o líder da extrema-direita, Oleh Tyahnybok, pedia aos polícias e militares que desertassem e se juntassem à oposição.

A 8 de Dezembro, os manifestantes derrubaram uma estátua de Lenine, onde pintaram uma grafite “Viktor Yanukovych: tu és o seguinte”. O Kyiv Post noticiava que os manifestantes vestiam máscaras, carregavam consigo latas de gás, bastões e cocktais molotov.

A 11 de Dezembro, a vice-secretária de Estado norte-americana, Victoria Nuland, e o seu embaixador Geoffrey Pyatt, juntaram-se aos protestantes na Praça Maidan e conversaram com os líderes da oposição. Os dois foram fotografados a cumprimentar pessoas e a distribuir comida. A importante revista norte-americana Foreign Affairs publicava um artigo com o título: “Viktor Yanukovych tem de sair.”

A 13 de Dezembro, o então senador norte-americano John McCain também se juntou aos manifestantes da Praça Maidan, realizando um discurso em que afirmou: “Estamos aqui para apoiar a vossa justa causa”. Até foi fotografado com o líder da extrema-direita Oleh Tyahnybok!

Depois de uma “trégua natalícia”, as manifestações prosseguiram a 14 de Janeiro de 2014; no dia seguinte, numa reunião do Comité das Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos, o vice-secretário de Estado-Adjunto, Thomas Melia, admitiu que o Departamento de Estado gastou cinco mil milhões de dólares americanos a “ajudar a Ucrânia”, incluindo 180 milhões em “programas de desenvolvimento” para “juízes, deputados e partidos políticos”.

A 16 de Janeiro, o parlamento ucraniano aprovou dez novos projectos-lei que permitiam uma repressão estrita à actividade de protesto, incluindo a remoção da imunidade dos parlamentares que promovessem a violência e a anulação da carta de condução a quem obstruísse as vias públicas.

A 19 de Janeiro ocorreram confrontos entre a polícia de choque e os manifestantes na rua Hrushevskoho; muitos dos manifestantes pertenciam a grupos de extrema-direita, como o partido Svoboda e Sector Direita, e foram vistos a usar símbolos nazis.

A 25 de Janeiro, o presidente Viktor Yanukovych estendeu a mão aos líderes da oposição, oferecendo-lhes um acordo de partilha de poder, propondo Yatseniyuk como primeiro-ministro e Vitaliy Klitschko como vice. A oposição recusou a oferta.

A 28 de Janeiro, num gesto de compromisso, o parlamento revogou nove das 10 leis, aprovando um diploma que concedia amnistia a todos os envolvidos nos protestos, desde que deixassem de ocupar edifícios governamentais. A oposição, uma vez mais, recusou a oferta.

A 7 de Fevereiro, conversas mantidas entre Victoria Nuland e Geoffrey Pyatt foram publicadas, onde se escutava a expressão: “Que se f…a União Europeia”. Numa das conversas, datada de 28 de Janeiro de 2014, discutia-se a composição do futuro Governo, após a eventual saída de Viktor Yanukovych. Numa sondagem publicada pelo Kyiv Post a maioria dos ucranianos opunha-se às manifestações na praça Maidan.

A 16 de Fevereiro, em mais uma tentativa de compromisso, o governo libertou todos os detidos durante os protestos; desta vez a oposição respondeu positivamente, suspendendo a ocupação da Prefeitura de Kiev que já durava três meses.

A 19 de Fevereiro, Viktor Yanukovych declarou uma “trégua”, numa declaração conjunta assinada pelos três principais líderes da oposição, comprometendo-os à negociação de uma paz duradoura.

A 20 de Fevereiro, snipers abriram fogo contra a multidão na Praça Maidan, resultando em pelo menos sessenta mortes. Manifestantes e polícias acabam mortos no tiroteio. A EuroNews relatou que a “trégua tinha sido quebrada” poucas horas depois de ter sido assinada.

A 21 de Fevereiro, apesar do derramamento de sangue, as negociações continuaram, resultando no “Acordo sobre a resolução da crise política na Ucrânia”, assinado por todas as partes, mais os ministros das Relações Exteriores da Alemanha e da Polónia. O acordo exigia a criação de um “Governo de Unidade Nacional” temporário, a ser substituído após novas eleições presidenciais até ao final de 2014. Também se exigia uma investigação completa aos disparos que ocorreram na Praça Maidan no dia anterior.

Viktor Yanukovych prometeu que o Governo não declararia o Estado de Emergência, não chamaria os militares e iria retirar a polícia do local dos protestos: em troca, os manifestantes deveriam entregar todos os edifícios públicos ocupados e armas ilegais.

Os líderes dos manifestantes – incluindo Dmitryo Yarosh, do Sector de Direita Neonazi – rejeitaram o acordo e ameaçaram invadir o Parlamento e a Residência Presidencial se Viktor Yanukovych não renunciasse imediatamente.

A 22 de Fevereiro, em lugar de respeitarem os termos do acordo, assim que a polícia recuou, os manifestantes invadiram os prédios do Governo e tomaram o controle de Kiev. Yanukovych fugiu para a cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia. Uma notícia da Time relatava os eventos assim: “Quando a polícia abandonou os seus postos em toda a capital, a oposição estabeleceu o controle sobre todos os principais cruzamentos e capturou o palácio presidencial, estabelecendo um perímetro em torno da antiga residência de Yanukovych”.

Poucas horas após a tomada da cidade de Kiev, o parlamento ucraniano votou a destituição de Viktor Yanukovych com 328 votos a favor e 0 contra, com mais de 120 deputados ausentes da votação. Obviamente, a votação foi inconstitucional, e não vinculativa – onde já vimos isto?

A 24 de Fevereiro, o parlamento demitiu um terço dos membros do Tribunal Constitucional da Ucrânia e emitiu um mandado de prisão para o presidente Viktor Yanukovych. No dia seguinte, traído pelo próprio partido, Viktor Yanukovych exilou-se na Rússia, afirmando que a sua vida se encontrava em perigo.

A 27 de Fevereiro, Arseniy Yatsenyuk tomou posse como primeiro-ministro interino da Ucrânia, cargo que ocuparia em pleno após as eleições de Maio de 2014. Vitaly Klitschko, o campeão de boxe, foi relegado para presidente da câmara de Kiev. Oleh Tyahnybok retomou seu cargo de simples deputado. A composição do Governo correspondeu exactamente à descrita na conversação de 28 de Janeiro de 2014 entre Victoria Nuland e Geoffrey Pyatt! Nesse mesmo dia, Anders Fogh Rasmussen, secretário-geral da NATO, disse à imprensa que “a porta ainda está aberta” para a adesão da Ucrânia!

No início de Março de 2014, surgem evidências de que os snipers que atiraram sobre as multidões na Praça Maidan não estavam às ordens do Governo ucraniano e que dispararam para ambos os lados, polícia e manifestantes, visando simplesmente gerar o caos.

Tal evidência foi apresentada à representante da política externa da União Europeia, Catherine Ashton, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da Estónia, Urmas Paet, num telefonema que mais tarde vazou para a imprensa, e foi confirmado como genuíno pelo Governo da Estónia. Nem a União Europeia nem o novo Governo da Ucrânia fizeram qualquer esforço para investigar essas evidências ou levar os assassinos à justiça.

A 21 de Março de 2014, o Governo interino da Ucrânia assinou o controverso acordo de associação com a União Europeia, através da aprovação de uma lei.

Em Outubro de 2014, o Governo que saiu das eleições, suportado por uma aliança de 5 partidos, considera a adesão à NATO uma prioridade nacional da Ucrânia!


A “invasão” da Crimeia

Em 1954, o líder soviético Nikita Kruschev, natural da Ucrânia, assinou um decreto a transferir a Crimeia da República Socialista Soviética (RSS) da Rússia para a RSS da Ucrânia. A Crimeia fazia parte da Rússia desde 1783, após a derrota do Império Otomano pelo exército de Catarina, a Grande, em 1774.

Em 1965, a cidade de Sebastopol, o maior porto da Crimeia, juntamente com outras nove cidades, recebeu o título de “Cidade Herói da União Soviética”, por ter resistido heroicamente aos ataques nazis durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1990, com a queda da União Soviética, a Ucrânia tornou-se independente e levou consigo o território da Crimeia.

Em Janeiro de 1991, a Crimeia realizou um referendo, perguntando à população se queriam regressar ao estatuto de República Socialista Soviética Autónoma da Crimeia, abolido em 1945. A votação foi de 94% a favor e a Crimeia declarou-se independente.

Em Fevereiro de 1991, o parlamento da Ucrânia reconheceu a independência da Crimeia, fazendo aprovar uma lei sobre a restauração da República Socialista Soviética Autónoma da Crimeia.

Em Setembro de 1991, o parlamento da Crimeia reverteu esta decisão, declarando o território como parte constituinte da Ucrânia.

Em 1992, o parlamento da Crimeia declarou novamente a independência da Ucrânia, constituindo-se como “República da Crimeia”. Elaboram a sua própria Constituição e decidiram agendar um referendo em relação à secessão da Ucrânia.

O parlamento ucraniano recusou-se a reconhecer a declaração e forçou o cancelamento do referendo. Como solução de compromisso, a Ucrânia propôs à Crimeia um estatuto especial de autonomia, desde que adicionassem uma linha à sua Constituição designando a Crimeia como parte da Ucrânia.

Em 1994, o recém-eleito presidente da Crimeia, Yuriy Meshkov, realizou um referendo, colocando três perguntas à população, com destaque para estas duas: (i) Apoia um regresso à Constituição de Maio de 1992 que não garante que a Crimeia faça parte da Ucrânia? (ii) Apoia que todos os cidadãos da Crimeia tenham direito à dupla cidadania com a Rússia? As três perguntas são aprovadas com pelo menos 77% dos votos. O presidente Meshkov restaurou então a antiga Constituição. O Governo ucraniano declarou o referendo ilegal e recusou-se a reconhecer os resultados ou a nova Constituição.

Em 1995, o Governo ucraniano extinguiu o cargo de presidente da Crimeia e reduziu os poderes do parlamento ucraniano, passando a governar o território por decreto.

Em 2001, num Censo realizado à população da Crimeia, 60% declarou-se etnicamente russa, e 77% considerou o russo como sua língua nativa.

Em 2004, na sequência da vitória eleitoral de Viktor Yanukovych, um aliado do Ocidente, políticos de diversas regiões da Ucrânia, nomeadamente da região do Donbass e da Crimeia, solicitaram um referendo para transformar a Ucrânia numa federação, mas foram completamente ignorados por Kiev.

Em 2006, no seguimento do conflito entre a Geórgia e a Rússia, a BBC enviou um repórter para a Crimeia. Este escreveu um artigo que detalha o forte sentimento pró-russo na península, o papel fundamental que a cidade portuária Sebastopol desempenhou na História da Rússia, e os avisos de muitos habitantes da Crimeia de que “os nacionalistas em Kiev” estavam a tentar “expulsar os russos”.

Entre 2009 e 2011, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento realizou uma série de pesquisas na Crimeia sobre a questão da reunificação com a Rússia. Cada pesquisa retornou 65-70% de respostas positivas, entre 16 a 25% de indecisos e apenas 9 a 14% a favor da permanência na Ucrânia.

Em 28 Janeiro de 2014, com as manifestações a decorrerem na Praça Maidan, o presidente do conselho da cidade de Sebastopol, numa carta aberta, pediu ao presidente Viktor Yanukovych que proibisse o “grupo extremista” Svoboda e convidou os munícipes da cidade a formarem “Esquadrões do Povo”, conforme descrito na lei ucraniana, visando defender a fronteira da Crimeia: “É impossível permitir que militantes especialmente treinados e armados do “Sector Direito” e outras organizações pró-fascistas e extremistas penetrem na nossa cidade e ditem seus termos. Forneceremos uma defesa confiável de Sebastopol. Extremismo, ilegalidade e banditismo não passarão na cidade dos heróis”.

A 14 de Fevereiro, o Yahoo News informou: “A região autónoma da Crimeia da Ucrânia inclina-se para Moscovo”. O artigo dava conta que o parlamento da Crimeia emendou a sua constituição, incluindo a descrição de que a Rússia era o “garante da segurança da Crimeia”, e que as autoridades eleitas tinham pedido ajuda à Rússia no caso dos manifestantes da Praça Maidan tentarem mudar-se para a Crimeia.

A 20 de Fevereiro, o deputado e Presidente do Parlamento da Crimeia, numa reunião internacional em Moscovo, afirmou que a Crimeia “pode separar-se da Ucrânia, se o país se dividir”.

A 22 de Fevereiro, no dia em que Viktor Yanukovych perdeu o poder, em consequência das manifestações na Praça Maidan, o insigne jornal norte-americano The Washington Post perguntava: “A batalha por Kiev acabou, a batalha pela Crimeia está prestes a começar?”

A 23 de Fevereiro, numa das primeiras leis do regime que resultou da “revolução Maidan”, foi revogada a lei que atribuía ao russo o estatuto de língua oficial do Estado ucraniano. Os líderes da extrema-direita, Oleh Tyanobohk e Dimitri Yarosh, propuseram a ir-se mais além: banir tanto o Partido das Regiões, que suportava Viktor Yanukovych, como o Partido Comunista Ucraniano, ambos com forte implementação popular no leste da Ucrânia e na península da Crimeia.

Com o novo regime a implementar-se em Kiev, a 26 de Fevereiro de 2014, o parlamento da Crimeia reuniu-se numa sessão especial para discutir os eventos em Kiev. O líder do parlamento discursou a uma multidão que se encontrava fora do edifício: “Partilho o vosso alarme e preocupação com o destino da Crimeia…Lutaremos pela nossa república autnoma até o fim…Hoje, Kiev não quer resolver nossos problemas, portanto devemos unir-nos e agir de forma decisiva. O povo da Crimeia tem força suficiente. O neonazismo não funcionará na Crimeia. Não vamos trair a Crimeia.”

Na madrugada de 28 de Fevereiro, homens em uniformes, mas sem qualquer insígnia, assumiram o controlo de todos os aeroportos, portos marítimos, estações de comboio e passagens de fronteira na península da Crimeia; protegeram igualmente todos os prédios do Governo em Simferopol. Esses homens são mais tarde revelados como tropas russas das bases de Sebastopol.

Kiev e os principais dirigentes da NATO chamaram a presença destas tropas de invasão, mas a Rússia defendeu a sua presença, alegando que as tropas estavam lá a convite das autoridades locais da Crimeia e de Viktor Yanukovych, a quem eles ainda reconheciam como o legítimo presidente da Ucrânia. Além disso, os russos afirmaram que o contrato assinado entre a Rússia e a Ucrânia permitia uma presença militar de até 25 mil efectivos estacionados na Crimeia; em nenhum momento esse número tinha sido excedido.

A 11 de Março de 2014, o parlamento da Crimeia declarou-se independente da Ucrânia e anunciou a realização de um referendo para 16 de Março; em lugar de colocar a pergunta, independente ou não, propôs: (i) a manutenção da Crimeia na Ucrânia; (ii) o regresso à Rússia. Dois dias mais tarde, o parlamento da Crimeia convidou formalmente observadores internacionais da OSCE para assegurar que o referendo fosse justo. A OSCE descreveu a votação como “ilegal” e recusou-se a comparecer.

A 16 de Março, o resultado do referendo deu uma votação de 97% a favor da reunificação com a Rússia. A 21 de Março, a Rússia reconheceu o resultado do referendo.

Em Abril, o Governo da Ucrânia, alegando que a cobrança de uma dívida da Crimeia, fechou a barragem no Canal da Crimeia do Norte, reduzindo o fluxo de água doce para a península. O acesso à água é protegido pelo artigo 29 da Convenção de Genebra; cortar o acesso para punir uma população civil pode ser classificado como crime de guerra.


A guerra civil na Ucrânia

Após a reunificação da Crimeia com a Rússia, de imediato surgiram manifestações anti-Kiev na região do Donbass, hoje as repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk.

A 25 de Fevereiro de 2014, o recém-empossado ministro do Interior da Ucrânia dissolveu a tropa de choque Berkut da Crimeia que voltava para Sebastopol, depois desta reprimir protestos em Kiev. Ao retornarem a Sebastopol, essas unidades foram recebidas como heróis e foram-lhes emitidos passaportes russos; alguns, juntaram-se a unidades paramilitares para combater na região do Donbass.

A 18 de Março, manifestantes pró-russos ocuparam o edifício da câmara municipal de Mariupol.

A 6 de Abril, vários manifestantes pró-russos ocuparam os edifícios dos serviços de inteligência da Ucrânia nas cidades de Donetsk e Luhansk.

A 16 de Abril, protestantes pró-russos e contrários ao novo regime pós Maidan, atacaram uma coluna militar do exército ucraniano a caminho da cidade portuária de Mariupol (Donetsk).

A 6 de Maio, deu-se o massacre de Odessa (a ocidente da Crimeia), depois de enfrentamentos iniciados no decurso de uma partida de futebol. Grupos extremistas e favoráveis ao Governo ucraniano, resultante da “revolução Maidan”, cercaram dezenas de manifestantes contrários, que se tinham refugiado num prédio de uma Central Sindical, e provocaram um incêndio criminoso, usando cocktais molotov.

Os extremistas impediram a saída das pessoas – espancando as que tentaram fugir –, enquanto incendiavam as dependências do edifício do sindicato. O resultado foram 46 pessoas assassinadas, muitas das quais morreram sufocadas pelo fumo, outras queimadas, e ainda houve as que se atiraram da janela, tentando fugir das chamas. Os vídeos deste massacre são eloquentes.

A 9 de Maio de 2014, o recém-nomeado chefe do departamento de polícia da cidade de Mariupol, Valery Androschuk, convocou uma reunião da polícia local, acompanhado do chefe do batalhão especial “Denpr” – um grupo paramilitar de extrema-direita. Durante a reunião, o chefe de polícia deu ordem para dispersar a manifestação do “Dia da Vitória” sobre o fascismo – derrota de Hitler em 9 de Maio de 1945 -, bem como prender os “cidadãos mais activos”.

Alguns dos polícias recusaram-se a cumprir a ordem; de seguida, Valery Androschuk disparou um tiro sobre um dos polícias revoltosos. De imediato houve resposta, com Androschuk a ser ferido e o chefe do esquadrão “Dnepr” a ser morto. Os polícias revoltosos recusaram-se a obedecer a quaisquer ordens e declararam que não fariam guerra ao seu próprio povo. Androschuk barricou-se num dos escritórios do prédio e chamou a Guarda Nacional para ajudá-lo a reprimir os polícias revoltosos.

Imediatamente, foi enviada a Guarda Nacional e militantes do Sector Direita, com a ajuda de tanques, resultando no bombardeamento do edifício da polícia. Estima-se que morreram cerca de 100 pessoas neste incidente. Depois disto, os militares retiraram-se para a periferia da cidade, continuando o controlo da cidade a milícias pró-russas.

Após um impasse, a 13 de Junho, o Governo da Ucrânia tomou uma posição de força, enviando o batalhão Azov (constituído por forças extremistas) e o Dnipro-1 para recuperar o controlo da cidade, resultando num sucesso. Petro Poroshenko, o novo presidente da Ucrânia, ordenou a mudança da capital regional de Donetsk para Mariupol.

Após o prolongamento do conflito, no início de 2015, a 12 de Fevereiro foram assinados os acordos de Minsk (Bielorrússia), com a participação da Rússia, Ucrânia, França e Alemanha. Foi decretado um cessar-fogo entre as forças ucranianas e separatistas, obrigando as partes a retirarem do terreno o equipamento militar pesado. A OSCE foi chamada como observadora para o terreno.

Os acordos nunca foram respeitados; os combates transformaram-se numa guerra de trincheiras, envolvendo cerca de 75 mil soldados dos dois lados ao longo de uma linha de frente de 420 km de comprimento, cortando áreas densamente povoadas.

A guerra arruinou a Economia e as indústrias pesadas da região, gerou milhões de refugiados e transformou a zona de conflito em uma das áreas mais contaminadas por minas do mundo. Número de vítimas mortais deste conflito, segundo a OSCE: 14 mil pessoas. Alguém se indignou? Alguém solicitou a intervenção do Tribunal Internacional Penal? Os crimes estão aqui amplamente detalhados – dispensa comentários!


O menino do papá

Em Fevereiro de 2014, Hunter Biden, o filho do actual presidente dos Estados Unidos, foi dispensado do Exército em virtude de um teste de drogas – cocaína –, que acusou positivo.

Em Abril de 2015, um dos executivos da Burisma – uma empresa de gás ucraniana fundada por Mykola Zlochevksy –, de seu nome Vadym Pozharskyi, foi apresentado a Joe Biden, pelo seu filho Hunter Biden.

Nesse mesmo dia, Hunter Biden foi contratado pela Burisma para integrar o seu Conselho de Administração. Seria uma espécie de relações públicas entre a empresa e a Administração norte-americana. Salário mensal: 50 mil USD (cerca de 45 mil Euros). A partir de Maio de 2017, sofreu um ligeiro corte, dois meses depois de o seu pai abandonar o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos.

Em Fevereiro de 2016, o procurador-geral da República da Ucrânia, Victor Shokin, iniciou uma investigação à Burisma. Nesse dia, ocorreu uma busca à casa de Mykola Zlochevksy.

Em Março de 2016, o parlamento ucraniano despediu Victor Shokin. A União Europeia aplaudiu esta decisão.

Em Janeiro de 2018, Joe Biden numa conferência afirmou: “Olhei para eles e disse: vou-me embora em seis horas. Se o procurador não for demitido, não irá receber o dinheiro”. Referia-se a um empréstimo de mil milhões de dólares americanos à Ucrânia. A cabeça de Shokin foi servida num prato.


Winston Churchill foi assim?

Volodymyr Zelenskyy fez fortuna no mundo do entretenimento, através da empresa que fundou: Kvartal 95 Studio. Durante anos, esteve ligado ao oligarca Ihor Kolomoisky, uma relação que se desenvolveu em 2012, no mesmo ano em que o actual presidente ucraniano fundou as suas empresas em offshores.

Os Pandora Papers revelaram o nome de Zelensky. Uma das empresas ligadas à Maltex (uma empresa na qual detinha participações) recebeu 1,2 milhões de dólares americanos em 2013 de outra empresa offshore que estava ligada ao Grupo 1+1 de Kolomoisky. A quantia foi paga em forma de taxas de licenciamento para o show “Make a Comedian Laugh“. Impostos para a Ucrânia não é com ele.

Em Abril de 2019, Volodymyr Zelenskyy vendeu a sua empresa Kvartal 95 Studio ao seu amigo Serhiy Shefir – mais tarde tornou-se seu conselheiro na presidência.

Em Maio desse ano, o ex-comediante Volodymyr Zelenskyy foi eleito presidente da Ucrânia.

Em Agosto de 2019, mandou prender o seu opositor político Viktor Medvedcuk, do partido “Pela Vida”. Motivo: traição à Ucrânia.

A 2 de Fevereiro de 2021, Volodymyr Zelenskyy anunciou o fecho de três canais de televisão da oposição. Segundo a sua opinião, não eram mais do que propaganda russa no país.

Em Março de 2021,  Volodymyr Zelenskyy despediu o presidente do Tribunal Constitucional da Ucrânia, Oleksandr Tupytskiy, e outro juiz desse mesmo tribunal, Oleksandr Kasminin, “por representarem uma ameaça à independência e segurança nacional da Ucrânia.


Em Agosto de 2021, Volodymyr Zelenskyy considerou o gasoduto Nord Stream 2, que liga directamente a Rússia à Alemanha, “uma arma perigosa, não apenas para a Ucrânia, mas para toda a Europa (…) Encaramos este projecto exclusivamente pelo prisma da segurança e consideramos que é uma arma geopolítica perigosa do Kremlin”. Por sua vez, a subsecretária de Estado norte-americana, Victoria Nuland – aquela da Praça Maidan – disse: “Se a Rússia invadir a Ucrânia, o Nord Stream 2 não avançará”. E assim aconteceu!

A 12 de Fevereiro de 2022, Volodymyr Zelenskyy, numa conferência em Munique (Alemanha), anunciou a sua intenção de terminar com o Memorandum de Budapeste (1994), que proíbe a Ucrânia de desenvolver, proliferar e usar armas atómicas.

Portanto, estamos na presença de um novo Winston Churchill? Ressuscitou ele na Ucrânia?

O leitor decida!

Sem comentários:

Enviar um comentário