terça-feira, 11 de outubro de 2022

CHE E SARTRE

 A noite em que Jean-Paul Sartre fumou um charuto com Che Guevara

Entre fevereiro e março de 1960, pouco mais de um ano após a revolução, o casal de filósofos franceses passou um mês em Cuba e se encantou com a juventude do novo governo

Cynara Menezes

06 de outubro de 2013, 16h16

“Guevara, diretor do Banco Nacional, ao oferecer-me um excelente café em seu escritório, me disse:

– Primeiro sou médico, depois soldado, e finalmente, como o senhor vê, banqueiro.”

Entre fevereiro e março de 1960, pouco mais de um ano após a revolução que derrubou Fulgencio Batista, o casal de filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir passou um mês em Cuba. O simpatizante do comunismo Sartre já havia rompido com o partido, ao qual nunca se filiou, e publicado O Fantasma de Stalin, espécie de manifesto de seu anti-stalinismo e ao mesmo tempo de seu anti-imperialismo. “Éramos muito difíceis de classificar. De esquerda, mas não comunistas”, escreveu Simone em A Força das Coisas, terceiro volume de sua autobiografia.

A estadia rendeu um livro, Furacão sobre o Açúcar, publicado no Brasil como Furacão sobre Cuba pela Editora do Autor no mesmo ano, enriquecido com depoimentos de Rubem Braga e Fernando Sabino sobre suas viagens à ilha. Uma jóia que merece reedição. Sartre estava, então, totalmente embevecido com os jovens revolucionários barbudos e cabeludos que haviam tomado o poder na ilha caribenha. Anos mais tarde, em 1971, ele e Simone romperiam com Fidel Castro diante da prisão do poeta Herberto Padilla.

No livro, o filósofo relata suas impressões de um Fidel em princípio desconfiado e mal-humorado, que vai relaxando pouco a pouco, mas que se mantém “um homem difícil de ser enquadrado” –como eles próprios. Sartre também conta como foi seu encontro com o guerrilheiro argentino à meia-noite, quando Guevara ocupava o cargo de presidente do Banco Nacional e ministro da Indústria. Quatro anos depois, Che deixaria Cuba para retornar à guerrilha, primeiro no Congo, sem sucesso, e em seguida na Bolívia, onde é capturado no dia 8 de outubro de 1967. No dia seguinte, é morto.

O que mais chama a atenção no livro é o encantamento de Sartre  com o vigor de Che e dos outros revolucionários, em plena flor da idade. Não deixa de ser melancólico, à luz de hoje, ver que aqueles jovens envelheceram e que o poder não se renovou em Cuba. Talvez seja o mesmo problema que começa a enfrentar o PT hoje… Mas, naquela agradável madrugada de 1960, os ventos que sopravam eram frescos e cheios de esperança. Por eles, Sartre deixaria de lado o cachimbo com o qual sempre é retratado para fumar um “puro” cubano com Che, “o ser humano mais completo de nossa época”.

Leia abaixo trechos do relato de Jean-Paul Sartre sobre a viagem e o encontro com Che Guevara que traduzi da versão em espanhol.

***

Por Jean-Paul Sartre

O maior escândalo da revolução cubana não é ter expropriado fazendas e terras, mas ter levado garotos ao poder. Havia anos que os avôs, os pais e os irmãos mais velhos esperavam que o ditador quisesse morrer: a ascensão se efetuaria por antiguidade.

Prevendo o dia distante em que o time seria substituído, os partidos corriam de quando em quando o risco de proclamar publicamente sua adesão ao parlamentarismo. Tudo ia bem até que um dia os mais novos tomaram o poder e proclamaram que permaneceriam ali.

Abaixo os velhos no poder! Não vi um só entre os dirigentes: recorrendo a ilha encontrei apenas, em postos de mando, de um a outro extremo da escala, meus filhos –se é possível dizer assim. Em todo caso, os filhos de meus contemporâneos. Os pais nem se percebem: os quinquagenários desta ilha são os mais discretos do mundo.

Loiro e magro, imberbe, com seus 29 anos, o ministro das Comunicações não é o caçula dessa revolução, mas tem a alegria séria dos adolescentes. Isso basta para que seus jovens colegas se divirtam fazendo brincadeiras sobre sua juventude, o que equivale a se surpreender com ela.

Armando Hart tem 27 anos; Guevara e Raul Castro acabaram de fazer 30. Quando não falam dos assuntos públicos são como os demais jovens quando se reúnem: provocam uns aos outros e se percebe em suas palavras que a velhice começa muito cedo –cedo demais, em minha opinião.

(…)

No que me diz respeito, me sentia mais velho entre eles do que em Paris e, apesar de sua extrema amabilidade, temia ao mesmo tempo importuná-los e trair meus contemporâneos.

Já que era necessária uma revolução, as circunstâncias designaram a juventude para fazê-la. Só a juventude tinha a cólera e a angústia suficientes para empreendê-la e a pureza necessária para concretizá-la.

(…)

Em Cuba, a idade preserva seus dirigentes: sua juventude lhes permite afrontar a realidade revolucionária em sua austera dureza. Se têm que aprender, se devem ajudar-se com conhecimentos técnicos, os responsáveis não se dirigem a ninguém: dão um jeito. Ninguém saberá em que setor –geralmente é na vida privada– terão recolhido algumas migalhas de tempo abandonadas; ninguém saberá que aumentam indefinidamente a intensidade de seu esforço para reduzir indefinidamente a duração da aprendizagem.

Mas podemos adivinhar o que não nos dizem. Para citar somente um caso, o comandante Ernesto Guevara é considerado homem de grande cultura e isso se nota; não se necessita muito tempo para compreender que detrás de cada frase sua há uma reserva de ouro. Mas um abismo separa essa ampla cultura, esses conhecimentos gerais de um médico jovem que, por inclinação, por paixão, se dedicou aos estudos das ciências sociais, dos conhecimentos precisos e técnicos indispensáveis a um banqueiro estatal.

Nunca fala sobre isso, a não ser para pilheriar sobre suas mudanças de profissão; mas a intensidade de seu esforço se sente: se trai por todas as partes, menos pelo rosto tranquilo e relaxado.

Para começo de conversa, a hora de nosso encontro era insólita: meia-noite. E no entanto eu tive sorte: os jornalistas e visitantes estrangeiros são recebidos amável e longamente, mas às duas ou três da manhã.

Para chegar a seu gabinete tivemos que cruzar um vasto salão que só tinha móveis encostados nas paredes: algumas cadeiras e bancos. Em um canto havia uma mesinha com um telefone. Em todos os assentos havia soldados derrotados pelo cansaço; uns montavam guarda e outros dormiam, incomodados até no sono pela desconfortável posição.

Detrás da mesa com o telefone, vi um jovem oficial rebelde, praticamente dobrado em quatro, com os longos cabelos negros caídos sobre os ombros, seu boné cobrindo o nariz e os olhos fechados. Roncava suavemente e seus lábios seguravam fortemente a ponta de um charuto apenas começado: o último ato do adormecido havia sido acendê-lo, para se defender das tentações do sono.

Cruzando aquele salão tive, apesar de estar brilhantemente iluminado, a sensação de que havia subido num trem antes do amanhecer e penetrado num compartimento adormecido. Reconhecia os olhos avermelhados que se abriam, os corpos dobrados ou retorcidos, extenuados, o incômodo noturno. Eu ainda não estava com sono, mas através daqueles homens sentia a densidade das noites mal dormidas.

Uma porta se abriu e Simone de Beauvoir e eu entramos: a impressão desapareceu. Um oficial rebelde, coberto com uma boina, me esperava. Tinha barba e os cabelos longos como os soldados da ante-sala, mas seu rosto liso e disposto me pareceu matinal. Era Guevara.

Saíra do banho? Por que não? O certo é que começara a trabalhar cedo na véspera, almoçado e comido em seu escritório, recebido visitantes e esperava receber outros depois de mim. Escutei que a porta se fechava às minhas costas e me esqueci do cansaço e da noção da hora. Naquele escritório não entra a noite; para aqueles homens em plena vigília, ao melhor deles, dormir não parece uma necessidade natural, mas uma rotina de que praticamente se livraram.

Não sei quando descansam Guevara e seus companheiros. Suponho que depende, o rendimento decide; se cai, param. Mas de todas as maneiras, se buscam em suas vidas horas vagas, é normal que as arranquem aos latifúndios do sono.

Imaginem um trabalho contínuo, que compreende três turnos de oito horas, mas que faz 14 meses que é realizado por uma só equipe: eis o ideal que quase alcançaram aqueles jovens. Em 1960, em Cuba, as noites são brancas: ainda se distinguem dos dias; mas é só por cortesia e consideração ao visitante estrangeiro.

Mas apesar de suas extremadas considerações, não podiam fazer outra coisa que reduzir ao mínimo possível as horas imbecis que eu dedicava ao sono: ia dormir muito tarde e me acordavam muito cedo. Eu não o sentia: pelo contrário, com frequência me chateava, por tarde que fosse, ir dormir quando eles velavam, ainda que tivessem acordado cedo; por saber que me haviam precedido em várias horas. É que era impossível viver naquela ilha sem participar da tensão generalizada.

Aqueles jovens rendem à energia, tão amada por Stendhal, um culto discreto. Mas não ache que falam dela, que a convertem em teoria. Vivem a energia, a praticam, talvez a inventem; ela se comprova em seus efeitos, mas não em palavras. Sua energia se manifesta.

Para manter dia e noite a alegria limpa e clara da manhã em seu gabinete e em seu rosto, Guevara necessita de energia. Todos a necessitam para trabalhar, mas mais ainda para apagar, à medida que se apresentam, as pegadas do trabalho e as marcas do sono. Não se recusam a falar de seu nervosismo, mas não o deixam mostrar-se: levam o controle de si mesmo até parecer, ou melhor, até sentir-se tranquilos. As coisas vão tão longe que empregam essa energia, convertida em sua segunda natureza, para tiranizar seu temperamento.

Fazem o necessário, todo o necessário, mais que o necessário; até o supérfluo. Já disse que desprezavam o sono; é necessário; por outro lado, não suportariam –e eu o concebo também– que se ocorresse uma agressão fossem surpreendidos na cama. Quem não os compreenderia? Quem não compreenderia que a angústia e a cólera diante dos atentados e sabotagens os mantém despertos mais de uma noite?

Mas eles vão além: quase chegam a repetir a frase de Pascal: “é preciso não dormir”. Se diria que o sono os abandonou, que também emigrou a Miami. Eu só vejo neles a necessidade de ficarem despertos.

(…)

De todos esses noctâmbulos, Castro é o mais desperto; de todos esses jejuadores, é Castro quem pode comer mais e jejuar mais tempo.

Falarei de sua loucura: a sorte de Cuba. Mas, de todas as maneiras, os rebeldes são unânimes nisso: não podem pedir esforços ao povo se não são capazes de exercer sobre suas próprias necessidades uma verdadeira ditadura. Trabalhando 24 horas seguidas e mais; acumulando noites insones; mostrando-se capazes de esquecer a fome, fazem retroceder para os chefes os limites do possível. Semelhante triunfo provisional: essa imagem, presente em todas as partes, da revolução atuando sempre, alenta aos trabalhadores da ilha a liquidar definitivamente o fatalismo e a conquistar-se todos os dias, sobre o velho inferno irrisório da impossibilidade.

(…)

Levando as coisas ao limite, se poderia dizer que o rebelde obriga o agressor a escolher entre duas derrotas: ou o reembarque das tropas ou o genocídio. Qual é a pior? Ofereço à escolha. Sob o ponto de vista rebelde, dou como exemplo essas palavras de Castro:

– O bloqueio é a arma menos nobre: se aproveita da miséria de um povo para submetê-lo pela fome. Não aceitaremos isso –prosseguiu. Nos negamos a morrer nessa ilha sem levantar um dedo para nos defendermos ou para devolver os ataques…

– Que fariam vocês? –perguntei.

Sorriu tranquilamente:

– Se querem começar pelo bloqueio –respondeu–, não podemos impedi-los. Mas podemos fazer que o abandonem pela verdadeira guerra, pela agressão a mão armada –e o faremos, garanto. Mais vale morrer ferido na guerra do que de fome em casa.

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