sábado, 11 de janeiro de 2014

MANDELA

«Honrar Mandela por inteiro: da posição portuguesa

O pai da pátria sul-africana que conhecemos hoje não nasceu como político, lutador e líder da resistência no dia em que acabaram os conhecidos 27 anos de prisão. Honrar Mandela apenas “a partir da sua libertação”, sublinhando a opção pessoal e política pela conciliação nacional sem vingança histórica, é trair Mandela e a Política.


A ação extraordinária de Mandela, quer em grandes negociações, quer em opções simbólicas de enorme significado e de genuína capacidade de perdão interior, sem o qual não haveria a respetiva exteriorização, não pode ser elevada a um Mandela “do depois”, um santo pacifista, omitindo todo o seu passado, sem o qual não faria sentido o que foi o seu futuro e que tem de ser enaltecido. Tem de ser posto na palavra “exemplaridade”.

Ao contrário das omissões presentes nos vários tributos a Mandela, ao contrário de frases que escutámos como “mas no período anterior à sua prisão não era um pacifista e houve crimes dos dois lados”, é precisamente a atitude de Mandela no contexto histórico de luta armada – o que não é terrorismo – contra o regime do apartheid, contra um sistema oficialmente racista – fundamento para a sua condenação a prisão perpétua – e a atitude de Mandela no momento histórico em que encontra e cria condições para a via da conciliação sem luta que faz deste homem um político e um homem de exceção.

Não é possível, sem incómodo, escutar vozes que recordam comovidas o momento da libertação de Mandela sem que tenham por absolutamente ilegítima a causa da sua prisão. E parece que não têm.

Não querendo aqui fazer história, mas marcar um ponto, Mandela começou o seu combate com base num princípio de não-violência. Mandela foi preso antes da condenação mais célebre sem ter cometido qualquer acto de violência. A evolução brutal de um dos regimes mais violentos do século XX deixou Mandela e os seus sem alternativa: este ponto teve a data de 1960. Resistência pelas armas.

E muito bem.

Os horrores como o massacre de Sharpeville apenas intensificam a legitimidade da via da luta armada, com Mandela como comandante-chefe, porque um regime com as características daquele é suficiente para que a referida luta seja legítima, justa, corajosa e digna de exemplo.

A apologia vazia do pacifismo esquece que quem pega nas armas arriscando tudo por um valor universal – a igualdade – não o faz para cometer crimes, fá-lo para pôr cobro a um sistema que é em si mesmo um crime contra a humanidade.

Por exemplo, quando Cavaco Silva diz que “sempre foi contra a luta armada”, e que até viu “com satisfação” que foi essa a via de Mandela, para além de proferir uma frase que me escuso de qualificar, mostra que condena a via da luta de armada que faz parte do percurso do Mandela, figura a quem adere aparentemente por inteiro mas tristemente pela metade.

Como se percebe, aderir “pela metade” é repudiar.

Cavaco, como outros, está a dizer que a oposição a regimes como o derrubado na África do Sul, de quaisquer regimes sangrentos, totalitários, seja qual for o horror em que assentem, deve ser feita, sempre, “pelo diálogo”.

Que pensa então Cavaco e outros da mesma linha da acusação subjacente à pena de prisão de Mandela? Era um terrorista ilegítimo em luta com um exército e uma polícia encarregues de apagar em todas as dimensões uma população maculada pela cor da pele?

É irónico que Mandela tenha demorado a enveredar pela luta armada, que até tenha “dialogado”, e, mesmos nesses tempos, preso.

A resolução da ONU de 20 de Novembro de 1987, contra a qual votaram os EUA, o RU e Portugal, condensa o direito internacional certo que qualquer país tem de aceitar em todos os pontos, inclusivamente naquele que apoia o uso de meios armados se necessários até que o regime em causa ponha termo à verdadeira violação do direito internacional.

Não iliba, pois, em nada, nem um Reagan, nem uma Thatcher, nem Cavaco, que, concretamente neste último caso, tenha usado da diplomacia para, no mesmo dia, aquando da votação da resolução G (a outra era a A), votar a favor, constando da mesma a “libertação imediata e incondicional de Nelson Mandela a todos os outros prisioneiros políticos”, sem outros considerandos.

Pelo contrário, piora a explicação. Melhor seria que Cavaco e João de Deus Pinheiro assumissem que a votação foi a possível tendo em conta uma ponderação entre o caso a questão dos portugueses residentes naquele regime miserável. Nunca aderiria a esta explicação, mas sempre seria dar a cara por uma diplomacia de interesses e não de valores.

É simples: Portugal, os EUA e o RU ficaram isolados ao não aceitarem que um texto que exige a libertação de Mandela tem de ter uma narrativa que denuncie quem cometeu o crime contra quem e a legitimidade à luz do direito internacional de uma luta, tida por ilegítima no momento da decretação de uma pena perpétua.

A não ser assim, a não ter a luta armada de Mandela e dos seus seguidores contra o exército e contra a polícia até derrubar o apartheid, em que fundamento se baseou exatamente Cavaco para pedir a libertação de Mandela?

Pois é.

Tenho Mandela como um exemplo. Quando formou uma resistência, quando fez um percurso tentativamente não violento, quando teve a coragem, em nome de um valor universal, de pegar nas armas, quando resistiu 27 anos encarcerado e quando construiu a paz sem violência, com apelo à conciliação, com capacidade interior de perdão, porque viu que era possível.

Quem defende valores universais, não pega em armas por desporto.»
Texto: Isabel Moreira
Fonte: Aspirina B 

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