quinta-feira, 8 de outubro de 2015

DOMICÍLIA COSTA

«Domicília Costa

Está a ser apresentada como "a doméstica que não esperava ser eleita deputada pelo Bloco de Esquerda". Ela, que eu não conheço pessoalmente, certamente por modéstia, concorda, com frases simples do tipo "Olha em que sarilho fui meter-me".

Não haveria qualquer problema por uma doméstica, pensionista, avó de 69 anos ser eleita deputada. Oxalá mais fossem. Mas Domicília Costa é muito mais do que uma simples doméstica.

A historiadora Irene Pimentel, que já partilhou com Domicília muitas mesas de colóquios, esclarece: «A história dela é tudo menos banal. Não é uma "doméstica" como a querem definir, mesmo se neste momento provavelmente esteja reformada. Viveu toda a infância e adolescência numa "casa do Partido", pois os pais eram funcionários clandestinos do PCP, e tem muito, muito para contar. Penso mesmo que, dos filhos e das filhas de funcionários do PCP, terá sido a que mais tempo viveu na clandestinidade. É História. E não deixa de ser irónico que, num momento em que o BE ultrapassou em número de votos o PCP, haja uma deputada do primeiro partido com esta história.»

Só para dar mais alguns dados, aqui vai parte de um artigo do Público de 12/2/2012, intitulado "Amor em tempos de luta" e assinado por Susana Moreira Marques:

"Domicília Costa

A aliança de Domicília ficou guardada durante uma temporada, em que esteve doente, e só a pôs no dedo no dia em que dormiu pela primeira vez na mesma casa que o camarada de quem devia fingir ser "esposa", e que só tinha visto uma vez. Ela tinha 20 anos e ele 27. A casa tinha um quarto de casal, onde ele dormia; e ela ficava no divã da sala, como tinha sido sempre seu hábito. Aos 20 anos, faltava-lhe maturidade em quase tudo, mas não lhe faltava experiência da clandestinidade. Tinha crescido clandestina com os pais, tinha aprendido como se imprimiam jornais e folhetos de propaganda, tinha aprendido como se defendia uma casa, conhecendo os vizinhos mais do que aquilo que os vizinhos alguma vez a conheceriam a ela.

Os "cuidados conspirativos", as regras que um funcionário do partido tinha de aprender quando "mergulhava", eram para ela naturais, tinham feito parte da sua vida desde criança. Assim como era natural que lhe dessem uma tarefa de montar uma casa, o que implicaria deixar os pais e viver com um camarada. Pôs a aliança sem questionar, da mesma maneira que tinha deixado de brincar com outras crianças sem questionar, da mesma maneira que tinha já entendido que seria difícil alguma vez encontrar um companheiro fora do partido.

Ela saiu do Porto para a Baixa da Banheira. Tratava da casa. Esperava por ele quando ele estava fora. Mesmo quando ele estava em casa, muitas vezes ficava no quarto a trabalhar. Conversavam ao jantar. Ela saía para fazer compras, bom dia, boa tarde, nas lojas e aos vizinhos. Sentia-se só quando estava sozinha e durante muito tempo, quando não estava sozinha, vivia uma solidão a dois. Nos últimos três anos em casa dos pais tinha feito uma vida quase normal. Tinha ido trabalhar por o partido considerar que ela precisava de ver com os seus próprios olhos o mundo do trabalho e dos patrões, aquilo que lia no Avante! e no Militante que ajudava o pai a imprimir enquanto tiveram a tipografia. Fazia costura e gostava de ouvir as colegas contarem das idas aos cinemas e dos namoros. Ela nunca tinha namorado.

O mais parecido com um namoro era isto: horas em que ela e o camarada da casa ouviam as rádios clandestinas; por causa dos vizinhos, não podiam pôr o volume alto e tinham de se aproximar do rádio e um do outro. Até que, um dia, ele a beijou. Ela chorou e fugiu.

Domicília Costa vive hoje naquela que foi a última casa clandestina dos seus pais em Vila Nova de Gaia. Tem em casa ainda guardadas as alianças dos seus pais. Lembra-se que eles só começaram a usar aliança quando ela já tinha 11 anos, porque os camaradas começaram a dizer que seria mais adequado conspirativamente, era raro naquela época um casal não usar aliança. Como os pais nunca deram importância às alianças, também ela não deu e, quando se casou verdadeiramente com um exilado político que conheceu em Paris antes do 25 de Abril, decidiram não usar aliança."»

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