domingo, 3 de julho de 2016

JERÓNIMO DE SOUSA

As histórias desconhecidas de Jerónimo de Sousa
02.07.2016 às 8h18

O líder comunista é batizado pela Igreja Católica e tem uns padrinhos de peso. Mas o batismo na política começou na fábrica onde afinava máquinas para a metalurgia. Viagem aos esteiros do Tejo, ao mato da Guiné, à infância em Pirescoxe e às primeiras gloriosas reuniões com os históricos do PCP. Onde se fala do reencontro com o antigo patrão e de um avô injustamente condenado por homicídio. Eis Jerónimo de Sousa, a personagem com paredes de vidro


Se o próprio Alves Redol, em pessoa, assistisse àquele encontro, esfregaria os olhos para ver melhor. E, se Soeiro Pereira Gomes ouvisse aquelas palavras, escreveria um capítulo novo no seu Esteiros. Os nomes dos dois escritores neorrealistas não surgem à cabeça deste texto por acaso: eles foram as primeiras “leituras a sério” do protagonista desta história, Jerónimo Carvalho de Sousa, 69 anos, há 12 secretário-geral do Partido Comunista Português. O cenário está montado: estamos a escassas centenas de metros de bordejar a margem do Tejo, local onde evoluíram as personagens de Soeiro, “os homens que não tiveram tempo de ser meninos”, na sugestiva expressão do escritor, e que Jerónimo fixou para a vida. Ao fundo, a torre da antiga fábrica metalúrgica MEC podia ser arqueologia industrial. Jerónimo serve-nos de cicerone no local onde começou a trabalhar aos 14 anos, como aprendiz de operário. Pergunto-lhe pelo patrão. Com os sentimentos claramente divididos por um certo fascínio, o líder comunista recorda um “velho capitão de indústria”, um homem “paternalista”, mas um empresário que, apesar de avisado pela PIDE, não queria saber da atividade política dos seus trabalhadores. “Só perguntava: ‘sabes trabalhar? Então estás contratado’.” Foi graças a esta postura que entrou na mesma fábrica José Ernesto Cartaxo, futuro dirigente da CGTP e preponderante no recrutamento de Jerónimo de Sousa para o PCP. Como se chamava o patrão? A resposta sai imediata: “Jaime Lopes Ferro.” Viajamos no tempo. Uma pequena oficina ainda subsiste, num barracão contíguo à antiga fábrica. Pela rampa, aproxima-se um velho Volvo do início dos anos 90, que afrouxa junto a nós. Jerónimo mergulha para dentro do vidro aberto e é efusivamente cumprimentado por um ancião de quem viremos a saber que conta 93 primaveras. O carinho, a admiração e a surpresa pelo encontro inesperado sobressai. Se fosse combinado não teria acontecido.

E Jerónimo, com os olhos brilhantes, diz-nos, depois de se despedir: “Era ele!” Ele quem? “Jaime Lopes Ferro, o patrão!” Vivinho da silva, ao volante de um chaço quase tão (ferro) velho como ele e admirador confesso do comunista e ex-empregado. Repare-se nas palavras de despedida do industrial: “Ó Jerónimo, deixe-se estar onde está, que faz lá muita falta!” Ao cuidado de Soeiro e de Redol. E ao cuidado do Comité Central. Estamos apresentados?

“JERÓNIMO, ESTÁS A SER ROUBADO”
Já lá vamos, mais atrás, à infância, aos jogos de futebol com bola de trapos, aos pequenos furtos de fruta e açúcar da SIDUL, ao mestre-escola e ao padre que o batizou. A propósito, saiba que a madrinha de Jerónimo de Sousa foi Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Santa Iria de Azoia, terra que o viu nascer, no lugar de Pirescoxe. E que o padrinho foi um colonialista com fortuna feita em Angola, conhecido por Carlos “Africano”. E junte a estas curiosidades outra preciosa informação: o secretário-geral do PCP, apesar de não ser crente, ainda é capaz de articular, sem cábula, um compenetrado Padre-Nosso (“Padre”, como se dizia antigamente, e não “Pai”...). Já retomamos essas histórias. Por agora, mergulhemos nas paredes de vidro do bunker da sede do PCP, na Soeiro Pereira Gomes, nome que, pela segunda vez, surge nesta prosa, desta feita, por ser placa toponímica. É um Jerónimo aberto, transparente, por vezes emocionado, outras vezes indignado, aqui e ali de gargalhada fácil, que passa uma manhã a contar-me a história da sua vida. Nesta sala sem luz natural, a mesma onde há mais de 20 anos entrevistei Carlos Carvalhas, nada mudou. Assim se vê a força do PC, na perenidade, na constância, na conservação, na frugalidade, talvez na estagnação, embora, como se viu nas mudanças políticas dos últimos seis meses, até isso, com Jerónimo, seja ilusório. Escolheria, para começar, a retoma do cenário de início: a Fábrica, que passaremos a grafar com maiúscula, porque merece. Porque é nesta unidade de aparelhagem industrial, onde se fabricavam parafusos e redutores de gás, que, aos 14 anos, Jerónimo, oriundo de uma família apolítica, toma, pela primeira vez, consciência social. Estamos em 1961, três anos depois do furacão Humberto Delgado – de que o nosso jovem aprendiz nem sequer ouvira falar – e ano horribilis para Salazar, com a perda das possessões da Índia, o desvio do paquete Santa Maria e, em Angola, os primeiros tiros da Guerra Colonial. Nos lares nacionais, já um pouco diferentes da “Casa Portuguesa” de Reinaldo Ferreira, cantada por Amália Rodrigues, começa a universalizar-se o uso da bilha de gás. A empresa é pujante. O mestre do jovem Sousa abre-lhe os olhos: “Chegou ao pé de mim e perguntou: ‘Quanto é que vens ganhar?’ Eu recebia dez escudos por dia (5 cêntimos), e pagavam-me à semana de seis dias. Com os descontos, 57 escudos por semana. O mestre, que se chamava Manuel “Soldador”, disse logo: ‘Estás a ser roubado.’ Foi ele quem me conduziu para a leitura do Soeiro, do Redol... E também me emprestou um livro que me marcou: A Mãe, de Gorki.”

Jerónimo, apesar dos parcos estudos, é já um leitor compulsivo. Era dos que aguardava, com ansiedade, a carrinha Citroën da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian. Mais tarde, quando entra em leituras proibidas, será a “velha Olímpia” (como, carinhosamente designa a mãe) a oferecer-se para esconder os livros, nem que seja no autoclismo. A mãe, operária numa fábrica de enchidos, e o pai, operário da indústria química, diga-se de passagem, não conheciam uma letra. Essa propensão para a leitura fá-lo-á descobrir novos mundos. É por isso que, quando o padre se desloca, semanalmente, para ministrar a doutrina, e, tecnologicamente informado, se socorre de diapositivos para ilustrar as suas aulas, Jerónimo já conhece todas as figuras bíblicas que desfilam na parede branca.

É nessa altura que o clérigo confronta o rapazito de oito anos: “Tu és batizado? Não? Eu batizo-te!” Aconteceu na igreja de Santa Iria, sem a presença de familiares, nem os cinco irmãos mais velhos, nem o pai, ateu, nem a mãe, crente mas anticlerical, como veremos na caixa A incrível história do avô Leonardo. O padrinho “Africano”, que já conhecemos, ofereceu-lhe dez escudos. Quando a mãe viu a moeda, não deixou de lhe recomendar: “Ó Jerónimo, tu, agora, sempre que encontrares o teu padrinho, pede-lhe a bênção...”

O 11 QUE O FEZ DESISTIR DE ESTUDAR
Jerónimo de Sousa ficou desconfiado das realidades da vida depois das palavras vagamente subversivas do mestre Manuel. E mais informado ficou sobre essas realidades com as leituras posteriores. Mas o choque com a prepotência, que o marcaria para a vida e forjaria a sua alma revolucionária, surge numa aula de Português, do Curso Industrial, que frequentou, à noite, até ao quarto ano (atual oitavo). Enquanto me conta a história, observo-lhe os olhos, procurando detetar algum vestígio de autopiedade. Estão secos, duros, e o que encontro é revolta: “O professor tinha vindo de um bom colégio de Coimbra para o curso noturno de Vila Franca. Os alunos eram trabalhadores estudantes, como eu. E disse logo ao que vinha: ‘Estou habituado a elites mas vocês não precisam do Português para nada. Só estão aqui para melhorar algumas competências. Nunca darei mais do que um 11 de nota. Para começar, escrevam uma redação sobre ‘O homem e a necessidade do estudo’.” Jerónimo de Sousa agarrou-se à caneta e descreveu a sua vida. Levantava-se às sete da manhã e ia para a Fábrica, descendo, a pé, os três quilómetros que o separavam da pobre casa paterna. Descrevia as duras tarefas de operário. Levava a lancheira e já os livros. Despegava às cinco e meia da tarde, mudava de roupa, seguia a pé mais alguns quilómetros para a estação de caminho de ferro. Frequentava as aulas até às 23 horas e apanhava um dos últimos comboios de regresso a casa. Pela uma da manhã, atirava-se ao peixe frito e à sopa que a velhota lá deixara para requentar. E dormia umas escassas horas. E assim sucessivamente. Era a pena neorrealista que o inspirava, rematando a redação com a reflexão final: “E, no final, o máximo que obterei, será um 11...”

Na hora da entrega das redações, foi uma razia. Jerónimo descreve-o com voz lúgubre: “Fulano, medíocre. Sicrano, péssimo. Houve um suficiente menos. E guardou a minha para o fim. Leu-a em voz alta e os outros olhavam para mim. ‘Foi este gajo que escreveu isto?’ No final, disse: ‘Esta redação tem um 11. Os outros nove valores serão distribuídos pelos mentecaptos’. Naquele momento decidi que não valia a pena continuar a estudar.”

ABORDADO POR UM “CAMARADA MISTERIOSO”
Era, agora, um rapaz sem horizontes. A Fábrica, mais tarde a tropa, a guerra, talvez sobreviver e um casamento. Mas a semente da revolta está plantada. Safara-se, ao menos, de se ficar pela 4.ª classe, que era já um diploma para os filhos de operários daquele tempo. Graças ao olho do mestre-escola, o sr. Almerindo, que tanto insistiu para que continuasse a estudar e lhe pagou o exame de admissão ao Curso Industrial. E ao sacrifício da mãe, que, para não ficar a dever favores, se ofereceu, em paga, para lavar a roupa ao professor.

Jerónimo de Sousa passa a cultivar um estilo reivindicativo que o destaca perante os “olheiros” comunistas e sindicalistas da Fábrica. José Ernesto Cartaxo, que já encontrámos atrás, leva-o a uma reunião do Sindicato dos Metalúrgicos em Vila Franca de Xira. A organização encontra-se a recuperar, depois da prisão, em 1972, de alguns dirigentes. Integra uma lista vencedora para a direção dos Metalúrgicos de Lisboa. E é abordado por elementos do partido pouco antes do 25 de Abril, data que o apanha, aos 27 anos, como dirigente sindical – e pai da primeira filha, Marília, nascida um ano antes. A revolução faz mudar os planos para o 1.º de maio, que esperavam celebrar no Rossio, preparados para o confronto com as autoridades da ditadura. Na agenda, palavras de ordem pelo aumento dos salários, direito à greve e contra a Guerra Colonial. Segundo se soube depois, a DGS (antiga PIDE) tinha planeado deter todos os dirigentes sindicais a 30 de abril...

No dia 26, é convocado para uma reunião, organizada pelo PCP, em Alhandra, ao ar livre, numa praça local. Ali conhece Severiano Falcão (que viria a ser presidente da Câmara de Loures) que já cumprira um total de 15 anos de prisão nos calabouços da ditadura. Foi ele quem explicou aos presentes o que tinha sido o Movimento dos Capitães. Um destacamento da GNR ainda mandou dispersar, mas logo uma força da Marinha se aproximou e “quem dispersou foram eles...”

No dia seguinte, em Santa Iria, eram necessários oradores. Lembra-se como se fosse hoje: “Avancei e descrevi o episódio da ocupação do Ministério das Corporações, onde os camaradas haviam afixado uma tarja a mudar o nome para ‘Ministério do Trabalho’. Nesse dia, acercou-se de mim um camarada, ainda com ar misterioso, clandestino, a dizer que havia ‘umas pessoas que queriam falar comigo’. Logo a seguir ao 1.º de maio apresentei-me na Rua António Serpa, na então sede do partido e...”

O “RAPAZ” CAI NO GOTO DE CUNHAL
E já lá vamos. Neste ponto, convém fazer um parêntesis. Naquele dia, em Santa Iria, o PCP precisava de oradores. Os “olheiros” comunistas estavam atentos e a fama de Jerónimo de Sousa, um jovem operário de Pirescoxe, chegava às catacumbas do Comité Central. Conforme nos relata Carlos Brito, 83 anos, então grande figura do partido e, depois, um dos seus mais notáveis e inesperados dissidentes, o próprio Álvaro Cunhal, alertado, repararia nos dotes oratórios do “rapaz”. Como é que um jovem recém-filiado, sem currículo revolucionário de oposição ao regime salazarista, sem prisões ou torturas no cadastro, consegue ser incluído nas listas de candidatos a deputados à Assembleia Constituinte, logo em 1975, ultrapassando muitos dos mais encartados resistentes à ditadura? Como é que sobe de forma tão meteórica, de tal forma que, em 1996, ainda com Cunhal vivo, é distinguido para representar o PCP numa candidatura presidencial? E como é que, volvidos oito anos, ascende mesmo à liderança, sendo o primeiro secretário-geral operário desde Bento Gonçalves?

As explicações de Carlos Brito, que atribui o fenómeno às qualidades pessoais de Jerónimo e ao facto de “o rapaz ter caído no goto de Cunhal”, são explicações convincentes mas talvez não cheguem. Pacheco Pereira, 67 anos, estudioso da história do PCP e que já está a trabalhar no quinto volume da monumental biografia de Álvaro Cunhal, explica que o fenómeno Jerónimo de Sousa beneficiou do “tempo e do meio”. Do tempo, porque “o Partido Comunista perdia força nos meios estudantis, sobretudo para a extrema-esquerda, e nos grandes sindicatos de quadros, como os bancários e os seguros, que começavam a inclinar-se para o PS”. Do meio, “porque Jerónimo se inscrevia num ambiente geográfico e social de forte implantação do partido” e era “um promissor jovem quadro operário que atuava numa área de forte crescimento dos comunistas”

Seja como for, e fechamos agora o parêntesis para retomar o relato de Jerónimo de Sousa, naquele dia, na António Serpa, onde via, pela primeira vez, históricos como José Vitoriano ou José Lázaro, o segundo comunica-lhe: “E tu, agora, ficas a pertencer ao organismo dos metalúrgicos e vais ajudar a formar a concelhia de Loures!” O atarantado operário ainda pergunta: “O que é isso de uma concelhia?” Respondem-lhe que verá depois. E insiste se é desta forma que se entra no partido. “A gente trata disso depois!”, volta a responder Lázaro.

E assim nascia, na cintura industrial de Lisboa, um dos mais irredutíveis bastiões do PCP. E assim cai o mito da rigidez do partido e da suposta formalidade das suas impenetráveis normas. Pelo menos, durante aqueles dias de brasa e de reformulação, onde a passagem da clandestinidade para a luta aberta pelo poder exigia elasticidade e reflexos...

QUANDO ENCHIA A BOINA DE AÇÚCAR
Mas voltemos atrás, para ficarmos a conhecer mais sobre o background do líder do único partido comunista ainda forte da Europa Ocidental. Revisitemos a infância e juventude a ver se detetamos, na formação do líder comunista, algum vestígio de doutrinação política que justifique tal sucesso. Para além da bola de trapos e do hóquei “sem patins” que jogavam com improvisados sticks cortados dos ramos das oliveiras, os rapazes da criação de Jerónimo eram iniciados na natação, pelos mais velhos, nos esteiros do Tejo. Banqueteavam-se das lambujinhas, das amêijoas, do camarão miúdo ou dos caranguejos que apanhavam, ou das peças de fruta das quintas que “assaltavam”.

Para contornar algum bofetão paterno ou chinelada materna, que, fatalmente, os esperava quando chegavam com a roupa enlameada a casa, depois de uma tarde nos esteiros, valiam-se do açúcar. O pessoal da Fábrica fazia um biscate na estiva, na descarga do açúcar que saía da SIDUL, em camionetas, para as fragatas do Tejo. No horário certo, a viatura parava na passagem de nível e, atrás dos canaviais, os rapazolas esperavam. Os descarregadores, então, com os ganchos de agarrar os sacos, abriam-nos sem os rasgar e lá caía, para as boinas dos catraios, uma porçãozita do precioso grão. Quando chegavam a casa, as mães franziam o cenho ao ver a roupa cheia de lama, mas, depois, desanuviavam quando lhes era apresentada uma boina cheia de açúcar. E resmungavam, já amolecidas: “Hum... Olha que, para a próxima...”

“O QUE É ISSO DE SER DEPUTADO?”
A Fábrica, omnipresente, esperava por estes “homens” que mal tiveram tempo de ser meninos. O nosso já familiar sr. Almerindo bem lhes perguntava o que queriam ser em adultos. Serralheiro, mecânico, vidreiro – as respostas ajustavam-se ao mundo que conheciam. Nunca nenhum respondeu que queria ser deputado.

E, no entanto, um deles lá chegaria. Vale a pena retomar a história: meses depois da entrada de Jerónimo no partido, nas circunstâncias que já revisitámos, é de novo chamado à António Serpa. Lá estavam os históricos do costume. Um deles, José Magro, então com 54 anos, confronta-o com a candidatura à Assembleia Constituinte. Voltou a perplexidade da concelhia de Loures: “Deputado? Eu não sei ser deputado! Como é que isso se faz?” José Magro fez das suas palavras a apreciação do próprio Cunhal sobre Jerónimo: “Tu estás habituado a falar para plenários de mil trabalhadores e levá-los todos atrás de ti! Sabes defender os seus direitos, os direitos do trabalho, o direito à greve, a contratação coletiva... Precisas de algum professor para te ensinar isso? É a mesma coisa!”

Afinal, a doutrinação política de que andávamos à procura, não a encontramos no açúcar de Santa Iria, nem nas lambujinhas dos esteiros. Aí, encontramos vida real. E, pelos vistos, era de homens habituados à vida real que Cunhal procurava.

OS VERSOS CONTRA MARCELO CAETANO
Jerónimo de Sousa era, agora, literalmente, um deputado operário. De manhã, vestia o fato-macaco, na Fábrica. À tarde, uma camisinha lavada, em São Bento. Para trás, já estavam 14 anos de batente. As memórias eram muitas e as mudanças de vida quase alucinantes. Lembrava-se bem de como, numa Fábrica cheia de raparigas, ele, já afinador de máquinas, dava prioridade de assistência técnica “às mais frágeis e não às mais bonitas...”. Acabou por não arranjar casamento no local de trabalho. Esse surgiu muito cedo, aos 19 anos, mas com Ovídia, operária vidreira da Covina e (hoje) igualmente militante do PCP. Foram dois anos sem filhos, primeiro em casa da sogra e depois em casa arrendada (ainda hoje vivem em Pirescoxe, em casa arrendada). Depois veio a tropa e a guerra, na Guiné. Colocado, primeiro, no Porto, depois em Lanceiros 2, na Ajuda, em Lisboa, o operário fabril tira a carta de condução e a especialidade de condutor-auto da Polícia Militar. Estas funções resguardavam-no do teatro de guerra, por se enquadrarem em missões na retaguarda.

Colocado em Bissau, volta a atirar mais uma acha para a fogueira do espírito revolucionário que o levará ao PCP. Habituado a participar em atividades culturais e associativas, tinha feito teatro na coletividade

1º de Agosto, em Santa Iria de Azoia. Representara peças como A Forja, de Alves Redol, ou Felizmente Há Luar, de Luís de Stau Monteiro. Na Guiné, organiza convívios entre camaradas, onde não falta a chouriça e o queijinho saloio enviado pelas famílias. Armado ao pingarelho, com boa voz, entoa o tema subversivo de José Afonso, Menina dos Olhos Tristes, onde se canta que “o soldadinho não volta do outro lado do mar”. E acrescenta uma rima de sua lavra, dedicada ao então presidente do Conselho (primeiro-ministro da ditadura), Marcelo Caetano: “Maldito sejas, Marcelo, que nos mandaste para a guerra, vir combater estes povos, que são donos desta terra.” As paredes tinham ouvidos e a polícia política também. Passada uma semana, o comandante acorda-o, na camarata, às 4 horas da madrugada.. “Ó artista, levanta-te, traz a G3 e cinco carregadores e o estojo da barba.” Seria um exercício? Mas para quê o estojo da barba?

Marchou com o seu pelotão rumo a uma missão de 47 dias num dos locais mais desolados da colónia, próximo da fronteira do Senegal. Aterraram em Bambadinca, recentemente arrasada por 80 morteiradas. O comandante local comunica-lhes: “Não sei o que vocês fizeram, mas preparem-se. O PAIGC apanha aqui a malta à mão. Se querem dormir, cavem abrigos e montem segurança. Se querem comida, comprem na aldeia mais próxima, mas com cuidado, que eles ajudam os turras. De vez em quando passaremos por cá. Vocês são homens fortes, são da Polícia Militar, passem bem.”

Regressados a Bissau mês e meio depois, com a mesma roupa que tinham levado, já desfeita, e um alferes enlouquecido, o comandante manda formar o conjunto de homens de onde o garbo de PMs tinha desaparecido. Inesperadamente, e apesar de não terem, verdadeiramente, entrado em combate, concedeu-lhes um louvor. Jerónimo reagiu entre dentes: “Mete o louvor no cu, fosses para lá tu.” Ali mesmo, a solidariedade do mato resultou numa espécie de pacto: nas suas missões de policiamento e vigilância, ninguém daquele pelotão jamais participaria de qualquer soldado ou cabo. A aventura custou a Jerónimo de Sousa um acesso de paludismo de que ainda tem resquícios.

O LEICESTER DA POLÍTICA
O episódio da Guiné ajuda a conhecer a personalidade antipoder de Jerónimo, o seu atrevimento e irreverência, mas também a sua manha forjada no pequeno meio já industrial mas ainda rural que o moldou. Na verdade, tem uma história de vida banal, mas pouco comum num dirigente político de primeira linha, mesmo se considerarmos os comunistas. Ou, sobretudo, se considerarmos estes. Qual é o seu segredo? O rapaz que rouba fruta, o operário que afina a máquina, o soldado que engana os superiores, o empregado que pede o aumento, o aluno que se zanga com o professor, o político que cita adágios populares. Quando começa a aparecer na televisão, a mãe Olímpia, ainda viva, explode de orgulho.

Talvez fosse de homens destes que o PCP precisasse, logo a seguir ao 25 de Abril, para testar no terreno. Cunhal conheceu-o logo no 1º de maio de 1974 e confirmou do que ele era capaz quando o ouviu discursar num grande comício de campanha para a Constituinte, no Campo Pequeno. O partido estava há demasiado tempo na clandestinidade, conhecia mal o povo e o País. Pelo contrário, Jerónimo era a personagem de carne e osso do neorrealismo dos grandes escritores comunistas. Tinha a vantagem de ser “esperto”. Tinha uma certa experiência organizativa e capacidade de iniciativa, ele que foi fundador e dirigente da Associação Cultural e Desportiva de Pirescoxe, em cujo bar ainda bebe uns copos, reencontrando velhos amigos que, independentemente da cor partidária, o tratam por “camarada”. Para o PCP do pós-revolução, um elemento assim era ouro: aqui estava alguém que, definitivamente, ninguém via a “comer criancinhas ao pequeno-almoço”.

Entra, portanto, sem surpresa, para o Comité Central, aos 31 anos, quatro anos depois de se filiar e sem folha de serviços antifascista. A própria escolha posterior para secretário-geral explora a postura do homem comum. A mesma característica é posta a render na primeira candidatura presidencial. Ninguém dá nada por ele, mas surpreende, vencendo o preconceito do operário semianalfabeto (Lula da Silva ainda não era Presidente do Brasil...). Aquilo que parecia uma desvantagem torna-se uma força. Consegue fazer-se entender: já com a decisão de desistir à boca das urnas, para Jorge Sampaio, prepara suavemente as hostes comunistas, num comício, em Grândola, falando da necessidade de derrotar o candidato da direita (Cavaco), mas sem assumir, a sua própria desistência. Pelo tom ou pelas palavras escolhidas, o povo comunista capta a mensagem. Um alentejano de forte pronúncia cantada dirige-se-lhe no fim: “Atão, camarada, vai ter de ser à primêra, não é?...”

Talvez mereça o epíteto de Leicester da política, por ter conquistado um lugar de relevo – e hoje decisivo na “geringonça” da política nacional – contra todas as probabilidades. A sua ortodoxia, menos programática e mais instintiva, acaba por ser, assim, um sintoma de gratidão para com um partido que o arrancou do nada para lhe dar a possibilidade de ser alguém, algo que o professor de Português do Curso Industrial lhe recusou.

A SENTENÇA DE PINTO DA COSTA
Fruto da perda de influência do PCP na sociedade, e da respetiva ameaça coletivista, Jerónimo de Sousa é hoje, quase consensualmente, um avozinho simpático.

Os tempos duros do PREC não permitem o branqueamento do sectarismo que sempre demonstrou e demonstra, mas conseguiu adoçar a imagem com proximidade e boa disposição. Tem duas filhas, Marília, de 43 anos, e Lina, de 39, e três netos, Rui Pedro, de 14 anos, Rita, com nove, e Gabriel, com apenas um ano. Gosta de ler, jogar à sueca com os amigos, de ir à praia, de estar com “a sua gente” e todos sabem onde mora – a antítese total de Álvaro Cunhal. Continua a torcer pelo Benfica, mas a filha mais nova é portista. Um dia destes, numa visita ao Porto Canal, recebeu uma chamada de Pinto da Costa: “Sei que é benfiquista mas gosto muito de o ter por cá.” Quando o líder do PCP informou o presidente portista de que tinha uma filha adepta do FC do Porto, o “papa do Norte” respondeu: “Pois, os nossos filhos são sempre melhores do que nós...”

Ou talvez não seja tanto assim. Para o velho patrão, Jaime Lopes Ferro, Jerónimo saiu melhor do que a encomenda. Longe vão os tempos em que o dono da MEC se exasperava com o jovem operário, virando-se para o sindicalista José Ernesto Cartaxo: “Com você, pode-se falar, agora com o Jerónimo é impossível!” Hoje, porém, do alto dos seus 93 anos, espera que o seu antigo colaborador fique onde está “e onde faz muita falta”.

A INCRÍVEL HISTÓRIA DO AVÔ LEONARDO
Embora crente, a mãe de Jerónimo de Sousa era profundamente anticlerical. Tinha um motivo pessoal: o seu pai, o avô Leonardo que Jerónimo nunca conheceu, fora condenado por homicídio qualificado e cumpriu 19 anos de pena, até ser libertado, por se comprovar que se tratara de um erro judicial. Naquela tarde, numa rixa no campo, não foi a sua enxada que acertou na cabeça da vítima. Um padre, que guardara o segredo de confissão do verdadeiro assassino, só às portas da morte, apertado pela consciência, viria a esclarecer toda a verdade. Reaberto o processo, confirmou--se a inocência de Leonardo. E este foi libertado. Mas já perdera duas décadas de vida. Olímpia Carvalho nunca percebeu que a norma eclesiástica do segredo da confissão não pudesse ser quebrada em nome de um valor mais alto, como o da injusta condenação de um inocente.

E nada mais quis da Igreja, faltando ao próprio batizado do filho mais novo, Jerónimo, afilhado de Nossa Senhora da Conceição e de um conhecido colonialista de Santa Iria.

O ORTODOXO TRANQUILO
Carlos Brito, um histórico do PCP, herói de resistência ao salazarismo e, posteriormente, dissidente do partido, por romper com a linha estalinista, nunca testemunhou qualquer ato de Jerónimo de Sousa contra os críticos. “Sempre foi muito correto e ainda hoje tenho relações de amizade com ele.” Carlos Brito atribui o rótulo de ortodoxo, ou seguidor da linha dura, por parte de Jerónimo de Sousa, pelo facto de ter tido um “grande protagonismo na afirmação do PCP na Cintura Industrial de Lisboa, durante o PREC”. Foi então membro da Coordenadora e elemento ativo nas Comissões de Trabalhadores da Cintura. A verdade é que também nunca se ouviu, da parte de Jerónimo, qualquer palavra pública de simpatia ou conciliação, relativamente aos críticos e aos dissidentes ou qualquer diligência para o seu regresso. Como muitos outros, não deu qualquer passo no sentido da renovação do PCP. Como lembra Carlos Brito, “Cunhal estava do outro lado” e a sua influência era enorme, sendo o ascendente sobre jovens militantes como Jerónimo, que só aderiu ao partido após a revolução, “um fator muito forte”. Brito não deixa de elogiar o jogo de cintura de Jerónimo de Sousa, na viabilização do atual governo do PS. Também Pacheco Pereira, autor da monumental biografia sobre Álvaro Cunhal – que é, também, uma história do PCP –, nunca ouviu falar de atitudes proativas de Jerónimo na perseguição interna aos críticos. Sobre a sua ascensão, sem passado antifascista, explica-a pelo “meio e pelas circunstâncias” (ver texto principal). A sua condição operária e o reconhecimento junto dos seus pares, num meio onde o PCP precisava de se manter forte, fez com que o partido “confiasse nele”. Muito atingido pela emigração ou pela fuga de quadros, nomeadamente sindicais e universitários, para o MES, a extrema-esquerda ou o PS, o PCP tinha em bastiões como o de Loures capacidade de crescimento exponencial. Para o historiador, “a ortodoxia e o sectarismo estão mais presentes onde o PCP assentou a sua sobrevivência no pós-revolução”.

JERÓNIMO DE SOUSA
Cantou e fez teatro em Santa Iria de Azoia;

Andava a pé 8 km diários para trabalhar e estudar;

Ainda sabe rezar um padre-nosso;

É admirado pelo antigo patrão, ainda vivo;

Contraiu paludismo, na Guiné;

Eleito deputado à Constituinte, trabalhava na fábrica de manhã e ia a São Bento à tarde;

Cunhal reconhecia méritos “à oratória do rapaz”.


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