ENTREVISTA
Miguel Tiago: “Sou um traidor da minha classe”
A cumprir 39 anos, o ex-deputado do PCP sente-se honrado por ter barrado o caminho ao poder de Passos e Portas. Quanto à reedição da fórmula que permitiu ao PS governar, tudo depende do momento político pós-eleições.
NUNO RIBEIRO 27 de Agosto de 2018, 6:03
É filho da Margem Sul e tem no horizonte trabalhar como geólogo na área de Setúbal após a saída da bancada parlamentar comunista, depois de ter sido um dos jovens deputados do PCP. Motard de alta cilindrada, vai na terceira Super Ténéré 1200, e já participou na concentração de Góis. Pratica aikido, mas diz que durante um ano como porteiro de discoteca recorreu à persuasão para evitar conflitos. Desde o 25 de Abril que a família materna vive no Brasil, onde nasceu por acaso, e confessa: “Sou um traidor da minha classe.”
Sai do Parlamento em Setembro para a comissão de actividades económicas do Comité Central, e para se dedicar à sua actividade profissional, a geologia. Como lida com um trabalho político de retaguarda após ter estado na primeira fila?
Vou lidar bem, estive 13 anos no Parlamento, mas estive desde 1994 na Juventude Comunista Portuguesa e desde 1997 no PCP. A experiência no Parlamento é marcante, tem características próprias, uma exposição que se traduz em responsabilidade. Não sei como a mudança se reflectirá na minha vida, espero que não haja alterações, pois enquanto estive no Parlamento sempre fiz o possível por preservar o meu estilo de vida e as minhas características.
Que características?
Preservo as minhas actividades fora do trabalho, as artes marciais, as motos, a caça submarina, a escrita, o gostar da música, os concertos, o moche, sempre fiz o possível para não permitir que a entrega ao Parlamento e à vida política neutralizasse isso. Achei sempre que podia enriquecer a minha participação política com outras actividades. Houve alturas em que se tornava muito difícil manter o ritmo, parei os treinos de aikido porque não era possível conciliar uma comissão parlamentar de inquérito com o treino. Vou continuar para que não se altere muita coisa.
O que vai fazer como geólogo?
Gostava de trabalhar nesta zona [Setúbal], moro aqui desde sempre, sou muito ligado à serra da Arrábida, estou a ver se consigo, através das vias académica, profissional ou ambas, dedicar-me a esta zona. Para já, ajudarei transitoriamente a família, a minha mãe tem um centro de explicações e provavelmente darei explicações de matemática, físico-química, geologia, biologia, até ter uma coisa da minha área que está relativamente encaminhada.
Disse que no Parlamento não se criam soluções, mas sim problemas. Desdenha o parlamentarismo?
Desdenhar não é a palavra, quando se fala do Parlamento temos de ter em conta qual a sua representação e o que tem vindo a representar, e a verdade é que desde 1976 a sua composição foi sempre muito...
... mas isso não é o país?
Julgo que o Parlamento não representa o país tal como o conhecemos. As pessoas expressam aquela opinião no voto, não retiro nenhuma legitimidade, mas o sistema eleitoral e o sistema democrático em que supostamente vivemos têm muitas insuficiências. Enquanto tivermos um país assimétrico, em que uns detêm o saber, o conhecimento e o dinheiro e os outros não têm nada, há uma parte fraca que está mais exposta à mentira, à manipulação.
Não o honra ser representante dessa parte fraca?
Tive a honra de representar um partido que julgo estar do lado dos que vivem do seu trabalho, e a felicidade de estar de acordo em tudo o que tive de defender no Parlamento.
De que serviram estes 13 anos? Se o Parlamento não representa a realidade do país, foi tempo perdido?
Julgo que não. Aprendi muito sobre o funcionamento da democracia, o que precisamos de melhorar, da forma como os problemas das pessoas são tratados no Parlamento, como muitos deles se não fosse o PCP ficavam à porta. Na minha formação política foi fundamental. Quando digo que de certa forma há uma frustração política é porque eu, eu e os comunistas, vemos o mundo principalmente dividido entre os explorados e os exploradores e não o PS, o PSD, o CDS, o PCP. Não entre opiniões, mas entre o que cada um desempenha. Mas no Parlamento estão muito mais representados os exploradores do que os explorados. Basta ver quando discutimos leis laborais para que lado pende maioritariamente o Parlamento.
Fez alguma amizade entre deputados de outros partidos?
Não se pode dizer que tenha criado amizade. São conhecidos.
Tem admiração por alguém das outras bancadas?
Não tenho admiração nem por outros nem do meu, tenho respeito. Há percursos de vida que admiro pela dedicação à causa política, mas não tenho admirações.
Foi “soldado” de uma maioria parlamentar que deu uma reviravolta no país. Sente orgulho por isso?
Não há bem uma maioria. O termo maioria dá a ideia de uma certa unidade, o que há é uma maioria de deputados de diferentes forças políticas que inviabilizaram um governo PSD/CDS que tinha tido uma votação baixa, que não representava os anseios das pessoas e, portanto, o meu partido propôs-se travar a ascensão ao poder da PaF [Portugal à Frente]. Tenho muito orgulho de ter travado a ascensão ao poder do PSD e do CDS, tendo em conta o que o povo tinha passado. O que se fez depois foi permitir que o governo do PS governasse, com contributos do PCP, com viabilização de medidas, Orçamentos de Estado, e a continuidade do Governo, mas aquele não é o meu Orçamento, o Orçamento do Estado do PCP. Nesse sentido, dificilmente poderei dizer que me orgulho.
Valeu a pena? A fórmula deve ser repetida?
É um balanço que os portugueses terão de fazer, que os comunistas terão de fazer, mas acho que foi fundamental travar o PSD e o CDS. Quanto a continuar, depende do balanço que se venha a fazer dentro do PCP e fora dele.
Tem feito reparos, isso faz de si um ortodoxo, um puro e duro?
[Risos] Sou marxista-leninista, interpreto o mundo e os fenómenos políticos nesse quadro lógico. Tanto eu como o meu partido temos estado numa posição muito crítica com o que se está a passar, há coisas que merecem muitos reparos e críticas, algumas com a possibilidade de serem construtivas porque a solução parlamentar o permite, outras não.
Esses reparos condicionam a estratégia em relação a esta fórmula?
A estratégia do PCP ultrapassa em muito esta fórmula. Esta fórmula, quanto muito, circunscreve-se na táctica, não vivemos na realidade que gostávamos, mas na realidade objectiva. O que nos importa é que o PCP e o país ganhem o mais possível com esta situação.
Os seus reparos têm subjacente uma maior exigência do PCP ao PS e ao Governo?
Não é individual. Se criticamos o PS por aprovar o Código do Trabalho com a direita, o PSD e o CDS, contra os trabalhadores, é uma crítica que o PCP coloca colectivamente. Tal como muitas outras. Criou-se uma ideia desde o início desta coisa da geringonça que há uma maioria, que parece que todas as forças ali dentro têm a mesma perspectiva sobre este governo, o que não é verdade. Se atentarmos às intervenções dos deputados do PCP há críticas muito fortes e contundentes ao governo minoritário do PS, que não colocam em causa a posição conjunta mas que criticam a acção do Governo do PS nas diversas áreas.
Se for preciso outra vez barrar o caminho ao PSD e ao CDS.
Aquela circunstância foi muito específica quer para o PCP quer para o PS. O PS também tem demonstrado ao longo da sua história que, apesar de se afirmar à esquerda e até ter uma base social de apoio de pessoas de esquerda, é um partido que tem governado sempre à direita e com a direita. A circunstância [em 2015] não o permitiu e o PCP demonstrou, como sempre, estar disponível para políticas que reponham direitos ou avancem nas conquistas. Não foi uma grande alteração, o PCP sempre disse que “connosco podem contar para melhorar a vida dos portugueses”.
E no futuro também?
Continuará a ter esta postura, mas se isso se traduz num acordo parlamentar ou na viabilização de um governo depende do conteúdo concreto, do momento político e das propostas desse governo.
Está a admitir o reforço eleitoral do PS como um dos dados do problema?
Apesar de ser especulativo é uma possibilidade. É bastante provável que se o povo português fizer um balanço positivo desta governação face à anterior, porque é o termo de comparação mais próximo, é plausível pensar que isso se possa traduzir num reforço da votação da força mais volumosa desta solução política. Essa questão terá o seu peso, mas o que determina é o conteúdo programático.
O programa do Governo não era aquele em que o PCP se reconhecia e apoiaram a solução.
Daí ser necessário referir o momento. Aquele era o momento de travar a subida do PSD e do CDS ao governo, apesar do Presidente da República da altura ter feito tudo para que isso acontecesse contra a maioria da população. Foi uma solução que salvaguardou a independência do PCP, que não participa no Governo, é uma força parlamentar que se comprometeu em determinadas áreas a viabilizar o funcionamento do Governo. São nuances que podem parecer preciosidades.
As nuances são importantes?
Tudo o que influencia a vida material é importante. Entre dizer que há uma maioria de esquerda e um Governo minoritário que negoceia à esquerda há muitas diferenças. Neste caso, a solução encontrada entre o PCP e o PS ou uma amálgama PCP/PS são coisas distintas, há dois grupos parlamentares, dois partidos, dois programas. Houve a viabilização do Governo porque, se não houvesse, o Presidente da República também não poderia dar posse a um Governo se soubesse que ia cair no dia seguinte.
Diz que para perceber o PCP há que conhecer o passado para o bem e para o mal. O bem foi a resistência. E o mal?
Para fazer uma avaliação do PCP é importante conhecer o seu passado, a forma como é formado, construído ao longo da ditadura, porque essa marca identitária comporta características muito diferentes dos outros partidos. A clandestinidade de 48 anos trouxe-nos características que são, simultaneamente, uma das nossas grandes forças e uma das nossas fraquezas. Não é uma crítica é uma constatação, assim como o trabalho clandestino nos fortaleceu, marca-nos com características que nos colocam à margem da cultura política dominante. Vemos muitas vezes que os comunistas e o PCP têm alguma dificuldade em fazer informação para fora do partido ou que a sua mensagem não perpassa de forma fácil. Não é o PCP que está mal, mas a nossa marca está tão cunhada que nos distancia do que é hoje…
Como se pode ser marxista-leninista e estar distanciado da realidade social?
Não é estar distanciado, pode haver algumas dificuldades em que a mensagem do PCP toque fora do partido, a nossa linguagem e forma de ver é própria do marxismo-leninismo, um quadro lógico à margem da cultura dominante.
Sugere que se mude o povo?
Não estou a sugerir que se mude o povo e também não estou a sugerir que se mude o PCP. Estou a sugerir que temos de continuar esta luta de que a mensagem, mesmo que possa sofrer alterações de forma, chegue a cada vez mais pessoas, o que tem vindo a ser feito. Tendo em conta a forma como a comunicação tem vindo a mudar, só este ano o PCP abriu um Facebook, uma plataforma proprietária em que não controlamos o que lá está em que só controlamos os conteúdos. A mensagem passa por um servidor completamente alheio, ao contrário de um site cuja programação é feita por nós. Num partido revolucionário temos que ver as mensagens que vamos poder trocar no Facebook, estamos a colocar as mensagens nas mãos de um gigante capitalista que detém uma plataforma que achamos nos pode fazer chegar a mais pessoas. O PCP viveu a opressão, foi controlado, e portanto é reticente em colocar informação sensível nas mãos de um grupo económico.
As mensagens que colocarão no Facebook serão sempre de alcance limitado?
Será sempre de alcance limitado porque é ele que escolhe quem vê o quê, tem lá o algoritmo e provavelmente vai fazer com que a página do PCP só apareça para comunistas, que lá puseram um “gosto” ou que estão ligados a um círculo que permite que essa página apareça. Os conteúdos a colocar serão o que é passível de ser tornado público.
Portanto, não é verdade que a evolução técnico-científica está sempre a favor da mudança social?
Julgo que está a favor da evolução e supressão da luta de classes a favor do proletariado. A robotização e a automação podem libertar o ser humano para tarefas mais gratas, de arte, lazer, desporto, mas é preciso que a correlação de forças se altere. A evolução tecnológica vai permitindo ao proletariado ter condições de vida cada vez melhores. O capitalismo tem vindo a tentar fazer o contrário. Mas não vai conseguir explicar a milhões de pessoas porque é que as máquinas podem trabalhar o que trabalhávamos, e continuamos a trabalhar oito horas, a ganhar menos e a ter milhões de desempregados. O que não é sustentável do ponto de vista capitalista, pois só pode haver capitalismo se houver exploração do trabalho alheio, do homem pelo homem. Se houver exploração da máquina será outra coisa, mas não capitalismo, pode ser uma ditadura, um mundo terrível em que milhões vivem na miséria e os capitalistas na abundância do que a máquina produz.
Falando do passado, o que lhe suscita Álvaro Cunhal?
Admiração, pela coragem e lucidez. Honra de pertencer ao mesmo colectivo que ele. Todos os momentos da vida de Álvaro Cunhal foram de grande exigência, se calhar isso é válido para todos nós, mas naquela altura a exigência colocava-se até no ponto da coragem física. Hoje talvez essa ameaça não paire sobre nós, ainda…
Ainda, admite esse regresso?
Não diria um regresso, mas quando vemos a União Europeia a estimular o surgimento de forças nazis, ainda agora a UE e quase todos os partidos portugueses apoiaram a ascensão de nazis na Ucrânia que assassinaram 50 dirigentes sindicais comunistas quando tomaram o poder.
Quanto a Cunhal, a sua concepção de Revolução Democrática Nacional, o derrube do regime pelas massas, não falhou? Foram os militares que acabaram com a ditadura no 25 de Abril.
Álvaro Cunhal teve a lucidez de compreender que seria necessário um levantamento nacional que incorporasse as vertentes popular e militar. O levantamento militar dá origem a um golpe e esse golpe origina uma revolução. Se as massas não tivessem participado logo no dia 25 de Abril…
O golpe foi determinado pela necessidade de descolonização e, para tal, era necessário mudar todo o sistema político, ou não?
Se era impossível ficarmos pelo golpe militar, a própria acção dos militares tinha que contemplar a acção popular, sem ela não seria vitoriosa. Há uma relação dialéctica, o levantamento foi de facto nacional, militar e popular, apesar de ter a sua génese operativa nos militares. Se os militares não sentissem que havia um esgotamento nacional não teriam avançado.
Cunhal também admitiu que o PRD [Partido Renovador Democrático] não faria mossa ao PCP e eleitoralmente fez.
Não posso reflectir sobre esse período com muita intensidade, não foi um período que vivi e tenha estudado profundamente. Admito que a lucidez não signifique estar sempre certo, especialmente antes dos acontecimentos ocorrerem.
Que lhe suscita Carlos Carvalhas?
Respeito e de certa forma admiração, é um camarada que desempenha uma tarefa da mais elevada responsabilidade. Ser militante comunista tem sempre exigências que após os anos 90 [do século passado] são redobradas. Ser secretário-geral e contribuir para a unidade do partido, para a manutenção e ampliação da sua influência de massas numa altura daquelas não foi tarefa fácil, que o PCP atravessou com sucesso. Após 1991, houve uma grande debandada ideológica à escala europeia dos marxistas-leninistas, e há um Partido Comunista em Portugal que supera essa debandada, continua a afirmar que o socialismo e o comunismo são o futuro da humanidade. O meu camarada Carlos Carvalhas deu um contributo muito forte para que o partido tivesse mantido essas características.
Finalmente, Jerónimo de Sousa…
Suscita-me amizade, honra e orgulho por ter trabalhado com esse camarada, por toda a sua história de vida e, principalmente, pelo que ele é ainda hoje enquanto pessoa, dirigente e secretário-geral do PCP, com o qual eu tive mais oportunidade de conviver. As suas características são muito consentâneas com o colectivo e até acrescentam. Pela sua origem de classe, não é uma opção dele é um facto ser operário, mas a forma como lidou com isso ao longo da vida, como se manteve ligado às necessidades do operariado, às questões do dia-a-dia das pessoas, dos trabalhadores, e como ele próprio vive. Como decidiu colocar todo o seu engenho, saber e dedicação ao serviço do PCP. Não estou a colocar nenhum destes camaradas em altares ou píncaros, mas admiro esses dirigentes comunistas pela forma como contribuíram para o partido, apesar de achar que o principal não é quem está à frente do partido, é a base do partido e não a figura que surja mais vezes na televisão. A organização do partido, mesmo no carácter daquelas pessoas, é o que é determinante.
Está à beira dos 39 anos, tem um quarto de século de militância comunista. É fé, dogma ou verdade?
É convicção, não passa por fé nem por dogma. A verdade é sempre fruto de uma análise que se faz de acordo com um determinado pensamento. O enquadramento do materialismo dialéctico e do materialismo histórico faz-nos que vejamos a realidade de uma certa maneira. Como se cada um de nós tivesse uns óculos, muitos vêem pelos óculos do jornal PÚBLICO, outros pelos da TVI, outros pelos óculos da burguesia que nos impõe a todos.
E há os óculos do PCP.
Há os óculos do PCP, do marxismo-leninismo. Onde uns vêem colaboradores, outros vêem explorados, trabalhadores. Onde vêem empreendedores os outros vêem patrões exploradores. Onde uns vêem democracia, outros vêem engano. Não vejo a luta dos comunistas como os comunistas bons contra os capitalistas maus, a luta de classes não é entre bons e maus, é característica do estado actual de desenvolvimento das forças produtivas e da sociedade. O capitalismo foi determinante para modernizar os meios de produção, elevou as condições de vida de largas camadas da população, massificou a produção, está a socializar o processo produtivo mas não está a socializar o produto. O que se produz continua a ser acumulado. Sem capitalismo não teríamos provavelmente atingido o patamar de desenvolvimento que atingimos.
Escreveu nas redes sociais que se o seu direito à saúde e educação de nada valiam, também não valia o direito à propriedade. É a insurreição?
Não tenho medo da insurreição, antes pelo contrário, devemos não ter a ilusão de que o capitalismo se resolverá a si próprio e se transformará em socialismo só pela vontade dos grupos económicos. O que escrevi foi durante a troika e o que quis dizer é que se a Constituição estava suspensa, então aqueles que a suspendiam tinham de ter em conta que os seus direitos constitucionais também ficariam suspensos. A Constituição é um pacto social e se é válida para uns tem de ser válida para todos.
Nasceu no Brasil por acaso?
A minha família da parte da minha mãe estava muito bem posicionada no antigo regime, durante o fascismo, apesar de não terem grandes ligações políticas, o meu avô era gerente da Socel, agora Portucel, e quando foi o 25 de Abril houve mobilizações na empresa que forçaram o meu avô à saída. A minha mãe usa o termo saneado, foi um processo no qual o meu partido não esteve envolvido. O meu avô sai da empresa, vai para o Brasil também trabalhar nas celuloses, a minha mãe vai em visita aos pais e eu nasço por mero acaso, um mês antes do previsto.
A origem de classe criou-lhe problemas no PCP?
Nunca senti tal coisa.
Isso leva-o a ter uma exigência maior consigo?
Eu já decidi há muito tempo trair a classe que integrava, já fiz as pazes com isso. Sou um traidor da minha classe. Se sou filho da pequena burguesia, os meus avós eram proprietários tinham até bastantes terras, bastantes casas, eu desde miúdo podia ter tentado ganhar a proximidade desses bens e fazer pela minha vida.
Esses bem continuam no domínio familiar?
Hoje não há praticamente nada, os meus avós foram vendendo, não tenho absolutamente nenhuma intervenção em nenhuma parte do processo. Tornei-me comunista por opção, decidi colocar os meus esforços e capacidade ao serviço de uma classe que não é a da minha origem familiar.
Alguma vez voltou à sua terra de nascimento?
Voltei lá várias vezes quando era miúdo. A minha mãe levou-me a ver a família, grande parte da família da minha mãe ficou lá, os meus avós, todos os irmãos da minha mãe, os meus primos. A última vez que estive na cidade de João Pessoa onde nasci, no nordeste no Brasil na ponta mais oriental do Brasil, foi em 2000 ou 2001.
Lula da Silva desiludiu-o?
A social-democracia nunca me iludiu, na minha opinião Lula é um social-democrata. O Brasil tem uma realidade complexa, um regime fundiário muito complexo, problemas próprios, uma dimensão político-administrativa, para além daquela massa humana e terrestre. Tenho feito o possível por acompanhar o caso do Lula, tenho falado com a minha família diariamente sobre isso, e não consegui perceber aquele processo, tenho mesmo as maiores dúvidas se há verdade. Tenho a certeza que se acrescenta uma perseguição pelo facto da política que ele fez, de ter decidido que uma parte do que os grupos económicos produziam devia ir para o povo através da saúde, da educação. A história do PT [Partido dos Trabalhadores] tem também muitos vínculos com o capitalismo brasileiro, não é um partido que se afirme revolucionário, defensor de uma revolução socialista, é reformista. O nosso Presidente da República actual ia de férias de borla com o Ricardo Salgado e isso não faz com que eu acho que o homem é corrupto, mas diz-me muito com quem ele se dá, diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.
Tiananmen existiu ou foi uma montagem?
Existiu, mas toda a construção em torno de Tiananmen é um embuste. Há várias versões, os Estados Unidos não defendem a mesma versão que a Amnistia Internacional e os britânicos que afirmam que morreram dez mil pessoas. Os números do governo chinês dizem que os mortos não são mais de 500, distribuídos entre as forças militares e os estudantes.
O que é hoje a China?
Vejo a China como um país governado por um Partido Comunista que está numa fase de desenvolvimento dos meios de produção e das forças produtivas com vista à construção do socialismo. A China saiu de uma situação feudal há 50 anos através de uma revolução socialista acompanhada por uma revolução cultural, com todas as convulsões, que não foi acompanhada, nem nos modos nem na forma, pelo meu partido. Não é aquele tipo de intervenção nem de governo que o PCP defende.
Um país, dois sistemas parece-lhe normal?
Não me parece normal, parece-me que a realidade chinesa implicou opções que não defendo mas respeito.
Há uma grande diferença entre a antiga URSS e a Rússia de Putin?
Claro que há, espero que seja evidente para toda a gente porque, às vezes, parece que nos referimos a Putin como o herdeiro.
Putin merece-lhe alguma simpatia?
Não, não me merece nenhuma simpatia. A Federação Russa tem tido na cena internacional um papel de contrapoder que por vezes me parece mais respeitador da lei e do Direito internacional.
Apesar das acusações de ingerência nas eleições de vários países e da Ucrânia?
Acusações de ingerência são diferentes de ingerência, não tenho dados de que tenha havido actos de ingerência. Não me lembro da Federação Russa intervir militarmente em nenhum país para impor o controlo. A intervenção na Ucrânia tem a ver com uma região ucraniana que não queria a alteração do regime que se deu e, na minha opinião, bem.
Tem uma formação científica, é geólogo. Há alterações climáticas?
Há e sempre houve. A tese dominante é que as alterações climáticas se estão a agravar e que são provocadas pelo homem. O que me parece é que estão a ser intensificadas pela acção humana e os seus efeitos afectam cada vez mais população devido à gestão capitalista. As soluções que o capitalismo está a apontar são embustes. Taxar o carbono é uma solução mais preocupada com a rentabilização de mercados e a penalização de países em vias de desenvolvimento. Eu não quero um mundo que não tenha CO2, mas que tenha pessoas que não tenham o que comer. Quero um mundo em que permitamos aos povos em desenvolvimento que se desenvolvam com os meios que tiverem, com sensibilidade ambiental cada vez maior. Acabámos com os seus recursos, explorámos a mão-de-obra deles, acabámos com os nossos recursos, poluímos com fartura, toda a poluição do mundo… bem agora a Índia e a China estão a afirmar-se como grandes poluidores, até hoje a Europa e os Estados Unidos eram os maiores.
O desenvolvimento justifica tudo?
Não, nem há desenvolvimento se houver destruição do globo. Há riscos em tudo o que fazemos, também estamos a entrar em embustes, estamos a trocar carros por carros eléctricos que provocam desequilíbrios no ambiente praticamente iguais. A extracção de lítio que estamos a fazer para ter essas baterias é terrível, devassa tudo e provoca uma poluição que só vamos conhecer dentro de 20 anos, quando as baterias estiverem obsoletas.
Disse que não convidaria Marcelo Rebelo de Sousa à Festa do Avante!, mas ele foi. Devia ter sido proibida a entrada?
Ora essa, claro que não. Eu não o convidaria, não o conheço de lado nenhum, não tenho simpatia pelas suas posições nem pela sua forma de estar da vida. Foi muito bem-vindo quando lá foi, mas eu não o convidava.
Pratica artes marciais para se defender, atacar ou para relaxar? Na juventude, quando era porteiro de discoteca, recorreu à sua prática?
Comecei com dez anos, foi-se tornando uma parte da minha vida e é um caminho de desenvolvimento pessoal. Que não é só na cabeça, mas físico, no nosso bem-estar. O que mais aprendemos é não ter que usar, já recorri para me ter de defender, mas foi insignificante. No trabalho que tive durante um ano numa discoteca em Setúbal utilizei parte do que aprendi no aikido, estar tranquilo perante um conflito e sabê-lo resolver sem o uso da força. Cheguei a ser agredido, tive de controlar pela força e nunca houve problemas de maior.
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