quarta-feira, 2 de novembro de 2022

JOSÉ SARAMAGO - OVAR

(…) «há que dizer que o Museu de Ovar tem, por si só, um encanto particular. Primeiro, não é um museu, é um guarda-tudo. Ocupando o que foi casa de habitação, arruma como pode um recheio onde se juntam o banal e o precioso, a rede de pesca e o bordado, o instrumento agrícola e a escultura africana, o trajo e o móvel, os quadrinhos de conchas e escamas de peixe ou os bordados a cabelo. E o que tudo isto junta numa forma singular de homogeneidade: o amor com que foram reunidos todos os objectos, o amor com que se guardam e são mostrados. O Museu de Ovar é um tesouro para quem da cultura tenha uma concepção global.
Quanto ao viajante, que nessas matérias vai tão longe quanto pode, chegou a altura de confessar que em Ovar deixou uma parte do coração: só assim saberá dizer o que sentiu diante daquele chapéu de mulher, preto, de espesso feltro, grande aba redonda donde pendem seis borlas. Quem não o viu nunca, não poderá imaginar a graça, o donaire, a feminilidade irresistível do que, pela descrição, se cuidará ser um desajeitado guarda-sol. Não faltam razões para ir a Ovar, mas o viajante, quando lá tornar, será por causa deste chapéu.

De Ovar ao Furadouro são cinco quilómetros por uma estrada que vai a direito, como se quisesse lançar-se ao mar. Aqui a praia é um areal sem fim, encrespado de dunas para o sul, e a luz é um cristal fulgurante, que no entanto, providência deste tempo invernal, se mantém nos limites do suportável. A esta mesma hora, no Verão, cegam-se aqui os olhos com as múltiplas reverberações do mar e da areia. Agora o viajante passeia na praia como se estivesse na aurora do mundo. É um momento solene.»

Em Viagem a Portugal

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