quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

Artigo de Opinião de António Macedo
«Sou precário como tu, diz o pai cinquentão ao filho 25 anos mais novo - os dois mileuristas, 500 euros por mês cada um. Já têm sorte, têm emprego, duas gerações que se cruzam de repente a fazer contas à vida. Há 827 mil desempregados oficiais no País, mais uns milhares que vegetam por aí, outros tantos que já emigraram, outros que irão emigrar e outros ainda aceitam empregos quase-empregos abaixo do que valem. São sobrequalificados, viram hambúrgueres, fazem segurança em empresas, ocupam-se dos call centers multilingues e multitasking.

São licenciados, são os novos portugueses do Leste, estão a leste da nova economia. Fazem como os ucranianos - professores, investigadores, etc. - fizeram para sobreviver: tornaram-se pintores, operários e domésticas. Só que não precisam de emigrar, mudam de pele aqui onde nasceram. Educadíssimos, competentíssimos, exploradíssimos; e humildes, claro, isso é muito relevante, porque este é um movimento com futuro em Portugal. A desvalorização interna é surrealismo económico puro.
Joan Miró também era surrealista. A certa altura usava muito a sucata nas suas obras. Há qualquer coisa de simbólico nesta história. O Governo, a coleção Miró e os dispensáveis de Portugal, tudo desconchavado. É a obra--prima do endividamento socrático, banhada pela austeridade de lata passista. Portugal é o resultado destas trips políticas. Não é arte, é engenharia social que vira o país de cabeça para baixo.
A coleção Miró. O Governo quis vender tudo e anunciou-o no Parlamento há ano e meio. A oposição, como a raposa, fez-se distraída; e a pindérica Secretaria de Estado da Cultura, orgulhosa delegação do Ministério das Finanças, agiu em conformidade: venda-se por 35 milhões de euros para baixar o défice e pagar a saúde pública. A saúde sempre em primeiro lugar - já não se pode dizer os velhos em primeiro lugar. Não importa que 35 milhões sejam uma ninharia (0,017% da dívida pública; 0,8% do que o defunto BPN deve à Caixa). A aritmética e o rigor, neste caso, atrapalham. Só interessam os princípios.
Abram alas aos princípios, vendam-se os quadros, o Miró nem sequer é português, é espanhol, e só "uma certa intelectualidade" se arrebita com essas coisas da arte. A cultura não produz, logo não existe. E os turistas? Os turistas têm o fado, o golfe e as praias. E as empresas, as fundações, não haveria para aí um mecenas, um Joe qualquer, que pudesse ficar com a coleção ou parte dela? Isso são detalhes. No Portugal pós-troika o pai é precário, o filho é precário, o neto... neto não haverá tão cedo, e nenhum deles tem vagar para visitar museus. Deixem-se de lirismo: somos pobres, no máximo podemos contemplar o menino da lágrima.»
Fonte: DN

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