domingo, 4 de maio de 2014

ANTÓNIO ALEIXO

«António Fernandes Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de Fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de Novembro de 1949) foi um poeta português.
Considerado um dos poetas populares algarvios de maior relevo, famoso pela sua ironia e pela crítica social sempre presente nos seus versos, António Aleixo também é recordado por ter sido simples, humilde e semi-analfabeto, e ainda assim ter deixado como legado uma obra poética singular no panorama literário português da primeira metade do século XX.


Ser artista é ser alguém !
Que bonito é ser artista,
ver as coisas mais além
do que alcança a nossa vista !

De vender a sorte grande,
confesso, não tenho pena;
que a roda ande ou desande
eu tenho sempre a pequena.

Forçam-me, mesmo velhote,
de vez em quando, a beijar
a mão que brande o chicote
que tanto me faz penar.

Porque o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não sou
a lama que muitos são.

Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.

À guerra não ligues meia,
porque alguns grandes da terra,
vendo a guerra em terra alheia,
não querem que acabe a guerra.

Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer que são,
são aquilo que eu pareço.

Enquanto o homem pensar
que vale mais que outro homem,
são como os cães a ladrar,
não deixam comer, nem comem.

Eu já não sei o que faça
p'ra juntar algum dinheiro;
se se vendesse a desgraça
já hoje eu era banqueiro.

A vida na grande terra
corrompe a humanidade.
Entre a cidade e a serra
prefiro a serra à cidade.

O mundo só pode ser
melhor do que até aqui,
- quando consigas fazer
mais p'los outros que por ti!

Eu não sei por que razão
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer.

Bate a fome à porta deles
e é lá mais mal recebida
do que na casa daqueles
que a sofreram toda a vida.

Uma mosca sem valor
poisa, c'o a mesma alegria,
na careca de um doutor,
como em qualquer porcaria.

Num arranco de loucura,
filha desta confusão,
vai todo o mundo à procura
daquilo que tem à mão.

Vinho que vai pra vinagre
não retrocede o caminho;
só por obra de milagre,
pode de novo ser vinho.

Quando te vês mal, e dizes
que preferias a morte,
pensa que outros menos felizes
invejam a tua sorte.

Mentiu com habilidade,
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele diz.

Tem a música o poder
de tornar o homem feliz;
nem há quem saiba dizer
tanto quanto ela nos diz.

Gosto do preto no branco,
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
do que ganhar por não ser.

Não sou esperto nem bruto,
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.

Queremos ver à distância
o que não está descoberto,
sem ligarmos importância
ao que está à vista e perto.

Porque será que nós temos
na frente, aos montes, aos molhos,
tantas coisas que não vemos
nem mesmo perto dos olhos?

Umas quadras são conselhos
que vos dou de boa fé;
outras são finos espelhos
onde o leitor vê quem é.

Vemos gente bem vestida,
no aspecto desassombrada;
são tudo ilusões da vida,
tudo é miséria dourada.

Quantas sedas aí vão,
quantos brancos colarinhos,
são pedacinhos de pão
roubados aos pobrezinhos!

Julgam-me mui sabedor;
e é tão grande o meu saber
que desconheço o valor
das quadras que sei fazer.

Quando não tenhas à mão
outro livro mais distinto,
lê estes versos que são
filhos da mágoa que sinto.

Peço às altas competências
perdão, porque mal sei ler,
p’ra aquelas deficiências
que os meus versos possam ter.

Quem nada tem, nada come;
e ao pé de quem tem de comer,
se alguém disser que tem fome,
comete um crime, sem querer

Entre leigos ou letrados,
fala só de vez em quando,
que nós, às vezes, calados,
dizemos mais que falando.

Pra não fazeres ofensas
e teres dias felizes,
não digas tudo o que pensas,
mas pensa tudo o que dizes.

P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

A quadra tem pouco espaço
mas eu fico satisfeito
quando numa quadra faço
alguma coisa com jeito

Nada direi, mas, enfim,
vou ter a grande alegria
de a Arte dizer por mim
tudo quanto eu vos diria

Nos versos que se improvisem,
os poetas sabem ler,
para além do que eles dizem,
tudo o que querem dizer

Após um dia tristonho
de mágoas e agonias
vem outro alegre e risonho:
são assim todos os dias.

São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que nós

Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande,
façam das mil pequeninas
uma só doutrina grande.

A arte em nós se revela
sempre de forma diferente:
cai no papel ou na tela
conforme o artista sente

Quem prende a água que corre
é por si próprio enganado;
o ribeirinho não morre,
vai correr por outro lado.

Embora os meus olhos sejam
os mais pequenos do mundo,
o que importa é que eles sejam
o que os Homens são no fundo.

Julgando um dever cumprir,
sem descer no meu critério,
-digo verdades a rir
aos que me mentem a sério!

Não é só na grande terra
que os poetas cantam bem:
os rouxinóis são da serra
e cantam como ninguém.

Da música a melodia
diz, pela alma falando,
mais do que a boca diria
muitas horas conversando

Faz mal o filho que mente
a seus pais, quando rapaz,
e é já tarde quando sente
o mal que a si próprio faz.

Um homem quando tem notas,
pode ser perverso e falso:
todos lhe engraxam as botas:
se as não tem, anda descalço.

Talvez paz no mundo houvesse
embora tal não pareça,
se o coração não estivesse
tão distante da cabeça.»

Autor: António Fernandes Aleixo

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