quinta-feira, 24 de março de 2016

JOHANA TABLADA

Acabar com bloqueio a Cuba "só depende do presidente Obama"
ALFREDO MAIA | 06/05/2015

Em entrevista ao "Jornal de Notícias", a embaixadora de Cuba em Portugal recorda que o bloqueio imposto pelos Estados Unidos continua intacto e avisa que o regime não é negociável.

Colocada em Portugal em outubro de 2013, Johana Tablada foi diplomata cinco anos nos Estados Unidos da América (EUA) e trabalhou 20 na Direção da América do Norte e dos EUA do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de que foi subdiretora nos cinco anteriores à nomeação para o posto em Lisboa.

Nesta entrevista, prevê a abertura de embaixadas em breve, como forma de restabelecimento de relações diplomáticas cortadas unilateralmente pelos EUA. Mas adverte que o processo de normalização de relações será mais longo e complexo.

Que expetativas tem quanto à conclusão das negociações em curso entre Cuba e os EUA?

Até agora o que aconteceu foi a decisão dos dois presidentes de restabelecer relações diplomáticas, negociações técnicas que têm a ver com a abertura de embaixadas e com o modo como vão ser feitas. Outra parte é o processo da normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos, o que passará num período mais longo e mais complexo.

Quanto tempo pode durar?

Depende muito da vontade política, fundamentalmente dos EUA, porque estamos a falar de um relacionamento muito assimétrico e do sistema de sanções mais abrangente do mundo. Há muita coisa unilateral que tem de ser levantada de maneira unilateral.

O que é que Cuba considerará resultados positivos nas negociações?

É positivo que os EUA aceitem, pela primeira vez, que podem e devem ter um relacionamento diferente com Cuba. Muita gente acha que o que estão a fazer é mudar o método mas não o objetivo, que o que não conseguiram com a pressão económica poderiam conseguir com um relacionamento que permita ao povo cubano "abrir os olhos" - estou a falar ironicamente porque é a narrativa que abunda nalguns círculos políticos, que é parte de um estereótipo muito fechado e confuso sobre o que é Cuba. É um passo positivo a possibilidade de estabelecer relações, de ter mecanismos civilizados para resolver as nossas diferenças, que são grandes e profundas e que, nalguns tópicos, vão continuar a ser. Vai permitir, pela primeira vez, que Cuba e EUA possam trabalhar em tanta coisa que têm em comum. Não é preciso mais nada do que a vontade. Podemos colaborar na luta contra o narcotráfico - e já estamos a trabalhar há mais de 20 anos neste tema -; na epidemiologia e controlo de doenças; causas como as alterações climáticas e a proteção do litoral e das espécies... O universo de cooperação será tão grande quanto a vontade dos EUA para avançar. Outra coisa é o que queremos modificar. Temos que ver se os EUA estão na disposição de devolver a base de Guantánamo, ocupada contra a vontade do povo de Cuba.

É uma condição?

Não, é parte da agenda. Não podemos falar de um relacionamento normal quando uma das partes tem medidas de coerção e de agressão económica. Cinco meses depois da declaração (dos presidentes de Cuba e dos EUA) de 17 de dezembro, o bloqueio está intacto, Cuba não pode utilizar o dólar nas transações internacionais, não recebe fundos nem créditos, não tem dinheiro do Banco Mundial ou do Banco Interamericano de Desenvolvimento e está totalmente fora do sistema financeiro internacional.

O que é que é inegociável para Cuba?

Cuba não tem intenção nenhuma de aceitar negociações do seu ordenamento interno, da sua ordem constitucional. Cuba tem toda a disposição do mundo para falar com os EUA de todos os tópicos, mesmo de direitos humanos, de sistema democrático, de temas gerais. Mas não para entrar em nenhuma negociação em que uma das partes possa pedir a Cuba ou condicionar a eliminação de sanções em troca de coisas que têm a ver com a maneira como os cubanos querem desenhar o seu sistema social e político.

Quis serão as consequências se o Congresso, de maioria republicana, não aprovar a retirada de Cuba da lista dos países promotores do terrorismo e o fim do bloqueio?

É verdade que a liderança do Partido Republicano tem posições contra o levantamento do bloqueio. Mas dentro dele há muitos senadores e congressistas que estão a favor, e estão a expressá-lo nas suas declarações e no patrocínio de projetos de lei que estão a correr para retirar o bloqueio - todo ou algumas partes importantes. Quanto à lista terrorista, já sabemos que Cuba vai sair. O pequeno grupo de congressistas, de origem cubana, que utilizou o tema de Cuba como tema de lucro com recursos federais para os seus próprios interesses e sequestrou a política externa dos EUA com a chantagem da importância eleitoral do estado da Flórida, acaba de dizer que não tem os votos necessários para parar a decisão do presidente Obama. Significa que, de maneira natural e irreversível, Cuba vai sair de uma lista onde não deveria ter entrado. Tudo o que o presidente dos EUA pode fazer sem permissão do Congresso é muito, esvaziando de conteúdo quase todo o bloqueio. Os advogados do presidente Clinton que negociaram com o Congresso a lei que amarrou as mãos dos presidentes desde 1996, e que diz que o bloqueio só pode ser mudado por leis congressistas, foram muito cuidadosos ao inscrever uma vírgula. Onde se lê que não se pode permitir que, por exemplo, Cuba exporte qualquer coisa que incorpore mais de 10% de componentes norte-americanos, diz "exceto se o presidente disser o contrário"; ou que as instituições financeiras internacionais de que os EUA fazem parte, como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, não podem emprestar dinheiro a Cuba, está algo como exceto se o presidente considere o contrário, ou que é interesse nacional. Ou seja, as suas prerrogativas são infinitas. Só não pode terminar o embargo, permitir o turismo ou permitir o comércio dos EUA com Cuba.

O embargo pode ser interrompido seletivamente?

Pode, se o presidente decidir avançar. Só depende dele.

Crê que as relações estarão normalizadas antes das eleições norte-americanas de 2017?

Acho que não. Tenho confiança de que nos próximos meses vamos abrir embaixadas e começar a cooperar em múltiplos tópicos. Mas o processo de normalização vai demorar. Há assuntos em que as posições dos dois países estão muito distantes. Há temas em que Cuba precisa de um ato de justiça. Os custos do bloqueio são algo que tem de ser tratado, assim como os EU têm o direito de discutir o problema das propriedades que foram nacionalizadas. A lei de Cuba que nacionalizou as propriedades dos EUA tinha um capítulo dedicado às indemnizações. Na altura, os EU rejeitaram 100% da fórmula e este capítulo ficou inacabado.

Ainda é possível recuperá-lo?

Sim, teríamos que ver o valor das reclamações. Cuba tem tudo preparado para a mesa de negociações e para um acerto de contas, no qual entrará a nossa reclamação pelos custos do embargo, estimado em mais de 100 mil milhões de dólares.

Essa negociação será feita ainda no mandato de Obama?

É nossa vontade que comece imediatamente, mas a normalização não, porque implica mudar a lei do bloqueio, que foi um ato unilateral e tem de ser retirado de forma unilateral. Aconteceu o mesmo com o Vietname: no restabelecimento das relações, a primeira medida (de Bill Clinton) foi retirar o bloqueio e devolver aos vietnamitas a capacidade de receber financiamento externo através dos mecanismos internacionais.

Para Cuba não é indiferente o resultado das eleições presidenciais dos EUA...

Seria uma tragédia se (ganhassem) candidatos como Ted Cruz ou Marco Rúbio, que têm uma retórica e um pensamento de guerra fria, totalmente reacionário, que estiveram muito ligados aos fundos federais que eram e são gastos na indústria do ódio contra Cuba. Poderia ser um retrocesso. Mas é difícil, porque o processo tem muito apoio da maioria do povo dos EUA. Depende muito da capacidade do presidente Obama de cumprir a sua palavra. Se fizer tudo o que pode ser feito para que o discurso de torne realidade, vai ser irreversível, porque será defendido por todos os que vão beneficiar imediatamente de um relacionamento proveitoso.

Que marcos pode Obama deixar que tornem irreversível este processo?

Em primeiro lugar, poderia abrir de imediato tudo o que sejam tópicos de interesse mútuo onde temos uma história de silêncio, como o contributo de Cuba para a medicina a nível mundial. Os EUA deveriam deixar de fazer sabotagem aos programas de cooperação, quando oferecem vistos para que os médicos desertem - o que é uma vergonha, pois estão a afetar o terceiro mundo e não só a nós na sua guerra de propaganda. Poderíamos trabalhar num acordo para o meio ambiente, para proteger as nossas águas, para trabalhar juntos na proteção das barreiras de coral, das espécies, na área da proteção civil - em que os EUA podem aprender muito com Cuba. E Obama poderia também usar as prerrogativas para retirar tudo o que pode do embargo, permitir o comércio de produtos. Como é possível um barco chegar do Arkansas cheio de arroz, que nós compramos ao abrigo a exceção aberta pelo Congresso graças ao apoio dos agricultores, e depois e regressar vazio, e um barco de Portugal ou da Alemanha ter que esperar seis meses antes de tocar portos americanos (depois de ter aportado a Cuba)? A União Europeia tem de fazer o seu trabalho e deveria estar a pedir aos EUA: o que fazes para ti também queremos para nós, porque sempre estivemos contra esta extraterritorialidade que viola o direito internacional.

Como resolver a contradição entre a normalização das relações com Cuba e a decisão de classificar a Venezuela como ameaça à segurança dos EUA?

Essa decisão não foi só contra a Venezuela, mas contra toda a América Latina. Foi uma ferida na nossa região e nos processos de integração regional e de participação. Mas também foi um grande erro, o de subestimar o alcance de uma mudança que ocorre na América Latina há mais de duas décadas. Mesmo os países que não têm simpatia com o processo na Venezuela rejeitaram-na, porque é um atentado contra a soberania dos países e da região. Não se pode oferecer uma cenoura a Cuba e dar pauladas à Venezuela. A política dos EUA para a América Latina foi sempre dividir os povos, bilateralizar as relações, dividir-nos para derrotar-nos.

Quase 80% dos cidadãos cubanos nasceram sob o embargo. Como estão a ser preparados?

Com esperança, com cautela também. Os cubanos acham que podemos e devemos ultrapassar décadas de maus tratos pelo nosso vizinho. Temos esperança de que (nos EUA) possa chegar a lugares importantes uma geração que se resigne a que a guerra fria acabou e que Cuba tem o direito a ser tratada com respeito. Mas há receio, há cautela, há quem tenha dúvidas sobre se isto não é outra estratégia para mudar o método para combater a revolução socialista com o abraço da morte.

Esse risco existe?

Existe, claro que existe.

Como preveni-lo?

Passa muito pela discussão pública, pelo debate interno, pela cultura política e pelas discussões francas entre nós. E esse debate existe, está nos blogues, na imprensa, com gente de todas as gerações. Há mesmo jovens com receio, porque são cultos, conhecem a tragédia que foi a nossa história. Há quem tema a subversão. Ninguém no mundo tem tanta experiência como os EUA na queda de governos soberanos e na organização de golpes de estado e de todo o tipo de primaveras que resultaram em todo o tipo de pesadelos. Há perigos, mas também há confiança.

Há quem diga que há o perigo de Cuba voltar a ser o casino e o prostíbulo dos EUA.

Tenho que dizer que não. São muitas gerações que, mesmo não vivendo na década de 1950, quando os americanos vinham a Cuba fazer o que não podiam fazer na sua casa, têm um conceito da dignidade e da honra muito grande. E uma visão para o nosso país sem nos submetermos a nenhum país estrangeiro. Seria muito ingénuo que, nesta altura, quando já suportámos e resistimos tanto para defendermos o que tínhamos e a construir uma sociedade melhor, andássemos para trás. Também aprendemos com a Europa de Leste e com os seus erros - quando eram socialistas e quando se tornaram capitalistas com uma euforia e uma ingenuidade ante o que vinha.

Como é possível a atualização do projeto socialista com investimento externo sem comprometer o ideal socialista?

É um desafio e um perigo, mas temos que aceitar. O que mais nos ajuda é o consenso social. Este é um modelo que foi profundamente discutido com o povo durante quase dois anos, num processo muito democrático - pelos centros do trabalho, pelos distritos eleitorais, pelas diferentes tipos de assembleias municipais, pelo parlamento - e foi modificado nuns 67% após a consulta popular. Temos um planeamento que estabelece que pelo menos 10% do nosso crescimento tem de depender do investimento externo e que outra parte virá da recentralização da economia e da abertura a formas não estatais. Ao mesmo tempo, estabelece que a forma fundamental de propriedade vai continuar a ser estatal. Há medidas regulatórias para evitar monopólios e um sistema tributário que é uma medida de controlo e de distribuição da riqueza. Hoje, 70% das terras têm formas de administração não estatais de administração, mas a terra ainda está nas mãos do sector público. Nós queremos um projeto socialista, próspero e sustentável. O que estamos a fazer é elevar a produtividade sem comprometer os nossos níveis de justiça social, o que explica também o ritmo das reformas e das mudanças. Se em desenvolvimento humano já colocamos Cuba nos níveis do primeiro mundo, não vamos andar para trás. E não é preciso ir para o capitalismo para ser produtivo.

Mas uma parte da economia será de natureza capitalista...

Vai haver uma economia a que prefiro chamar não estatal. Também há parte que é capitalista porque é a parte da economia que está a ser aberta ao sector externo através de parcerias, com uma gestão cubana e uma gestão estrangeira. A parte das receitas dessas sociedades que vai para o capital estrangeiro terá um final na sua economia capitalista; a que vai para Cuba vai para os hospitais cubanos, para as nossas escolas, para a distribuição do nosso sistema socialista.

Nesse contexto, como são tratados os trabalhadores?

Aí está um dos maiores problemas que Cuba tem. Os sectores ligados ao sector externo têm vencimentos muito acima do sector estatal - dos médicos ou dos professores, por exemplo - e há pessoas que podem tomar a decisão de abandoná-lo para ir trabalhar num hotel, por exemplo. O governo está a tomar medidas para ir ligando os resultados dos sectores aos salários. Os cientistas cubanos, cujo sector é público e exporta 600 milhões em produtos farmacêuticos e biotecnológicos, têm salários cinco vezes superiores ao meu. E está bem, porque estão a produzir uma riqueza e contribuem para o benefício coletivo. Mas é necessário elevar os salários também dos que trabalham no sector público. O ministro da Economia diz que é necessário elevar a produtividade.

Qual a importância do porto de águas profundas de Mariel no contexto da zona de desenvolvimento especial e da conclusão do canal do Panamá?

Cuba é a chave do golfo do México. Todas as rotas, de Norte para Sul e de Sul para Norte, passam por Cuba, que sempre foi o grande ponto de distribuição das mercadorias que vinham da Europa e das Índias e dos EUA. Com o bloqueio, Cuba teve de criar as suas rotas. Com a capacidade de manejo de contentores, o porto de Mariel pode ser uma ótima plataforma para armazenagem, cabotagem e distribuição para toda a América Latina. De Portugal vai um barco para Cuba a cada dez dias, que pode levar mercadorias para Cuba que imediatamente podem ser redistribuídas pelas rotas que não podem passar pelos EUA por causa do bloqueio - para o Brasil, México, Venezuela, Colômbia, etc...

Como avalia as relações com a Europa e com Portugal e que perspetivas tem?

A Europa perdeu a oportunidade de ter uma política externa com Cuba que correspondesse ao seu interesse. Durante o governo do presidente Aznar (Espanha), surgiu aquela invenção da posição comum, que não foi outra coisa senão colar-se ao governo de Bush, com a ideia de que, se internacionalizassem a pressão contra Cuba, ela cairia. Uma vez mais fracassaram. Nos últimos anos, muitos países deram-se conta dos acontecimentos também no interior da União Europeia, compreenderam que estavam a perder as oportunidades de um relacionamento legítimo. Entre eles estiveram a Holanda, a França e a Bélgica e Portugal também, embora num volume que poderia ser maior.

O que deve ser feito?

Uma das coisas a mudar é a falta de apoio institucional e financeiro ao empresariado português, que é uma desvantagem em relação aos competidores da França, Holanda e Alemanha, países que dão crédito à exportação, enquanto em Portugal não há nenhum. Mesmo assim, durante os últimos 20 anos, Cuba foi um parceiro estável, onde Portugal pode vender entre 30 milhões e 40 milhões de qualquer tipo de coisa, sem qualquer tipo de restrições. Exportam-se ferramentas, produtos químicos, material de laboratório, calçado, têxteis, metais, aço, numa lista de mais de 200 produtos, mas com cartas de crédito que os empresários têm de obter na Alemanha ou em Espanha...

É possível um incremento?

Pode-se duplicar facilmente. Falta o crédito e é algo em que estamos a avançar desde o ano passado com o contributo do governo. Aprofundaram-se as relações económicas entre os dois países dentro do enquadramento institucional que faltava. Portugal não participava nas feiras em Cuba. No ano passado, a AICEP foi lá com 50 empresários, o vice-primeiro-ministro Paulo Portas também foi. Há uma redescoberta, em Cuba, de muita coisa boa que se faz em Portugal. Foi criada a câmara de comércio Portugal-Cuba e está a haver um incremento das missões empresariais. Há muita complementaridade nos nossos sectores prioritários - a agroindústria tem um desenvolvimento recente impressionante, tudo o que é processo de reconversão industrial e cadeia de valor agregada, como a indústria ligeira toda, os têxteis, moldes, embalagens... As infraestruturas e as construções são prioridade e Portugal é um bom competidor porque constrói muito bem.

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