domingo, 23 de julho de 2017

EXPLORAÇÃO AEROESPACIAL

Como foi a vida dele durante 340 dias no espaço. “Estamos há demasiado tempo no planeta Terra”

Mikhail Kornienko passou 340 dias seguidos no espaço. Esteve a falar com estudantes portugueses e contou ao Observador como é viver tanto tempo longe da Terra. E diz que o futuro é em Marte.

Quando Mikhail Kornienko entrou na nave Soyuz-TMA que o levaria, a ele e ao norte-americano Scott Kelly, à Estação Espacial Internacional, sabia perfeitamente que era “um rato de laboratório”, uma “autêntica cobaia” ao serviço da ciência e do progresso que tanto admira. Kornienko e Kelly descolaram a 27 de março de 2015 do cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão, num voo operado em conjunto pela NASA e pela Roscosmos, a sua equivalente russa, levando consigo uma missão pioneira: passar um ano no espaço, para estudar os efeitos de uma estadia prolongada fora da Terra no corpo e na mente humana. O objetivo? Preparar uma viagem a Marte, atualmente estimada em 30 meses (dois anos e meio).

O momento em que a nave acoplou na Estação Espacial Internacional deu início à parte operacional da One Year Mission, que estava a ser preparada pelas agências espaciais dos dois países desde 2012. Durante 340 dias, o cosmonauta russo e o astronauta norte-americano seguiram uma rotina apertada, com tarefas que iam desde a manutenção da estação à realização de experiências biomédicas, à monitorização de sinais vitais e à escrita de um diário que permitisse a análise do estado psicológico dos dois homens.

“Todos os dias tínhamos coisas para fazer. Os dias estavam perfeitamente tabelados, os horários eram pré-estabelecidos na véspera, para prepararmos o equipamento, e as experiências e procedimentos técnicos que tínhamos de fazer eram programados com antecedência e seguiam um horário rígido”, conta Mikhail Kornienko ao Observador, depois de passar quase duas horas a responder a perguntas de estudantes e entusiastas do espaço que encheram esta semana o auditório do Departamento de Física da Universidade de Coimbra para ouvir o cosmonauta russo falar sobre a sua experiência.

O trabalho técnico e científico foi alternado com muito exercício físico — “a única forma de o nosso corpo resistir às condições do espaço”, mas que não impediu os problemas de articulações com que regressou — e com as frequentes videochamadas para a família. Mas nem isso lhe tirava os sonhos recorrentes de liberdade. “Sonhava que ia a casa de fim de semana e o meu maior medo era o de me atrasar e perder o voo de regresso”, disse aos alunos da academia de Coimbra. Num esforço por manter a sanidade mental num local em que aquilo de que mais precisava era “da própria Terra”, Kornienko acabou por pendurar fotografias de árvores nas paredes da estação espacial.

“Mas não chega.”

Gagarin e Armstrong, o pai e o chumbo nos exames médicos para a Força Aérea

Nascido em 1960, Mikhail Kornienko lembra-se bem da corrida ao espaço entre os Estados Unidos e a União Soviética, país onde nasceu. Tinha apenas um ano quando Yuri Gagarin se tornou no primeiro homem a viajar no espaço. Com 9 anos, viu o norte-americano Neil Armstrong dar o primeiro passo na Lua. Em plena era da exploração espacial, o jovem Kornienko também se apaixonou pelo espaço. Não apenas devido às influências que lhe chegavam de longe, mas, sobretudo, graças ao exemplo do pai, militar da Força Aérea soviética que pilotava helicópteros de salvamento.

“A minha grande vontade de ser cosmonauta estava relacionada não só com a motivação típica da altura, depois de o Gagarin ter ido para o espaço, mas também com o meu pai”, recorda o cosmonauta em conversa com o Observador. O pai morreu em 1966, tinha Kornienko apenas 6 anos. Estava em missão, a pilotar um helicóptero durante um grande incêndio, quando não conseguiu aterrar o aparelho antes de este explodir. Morreram os seis ocupantes do helicóptero e, durante anos, Kornienko regressou ali para depositar flores no local exato onde o pai morreu.

Depois da morte do pai, Mikhail Kornienko mudou-se com a mãe, a avó e o irmão para Chelyabinsk, uma cidade perto de Yuzhnouralsk, onde vivia. Lá, estudou até ao nono ano e juntou-se à escola de jovens cosmonautas, onde estudou navegação e fez os primeiros saltos de paraquedas. Saiu dali com um diploma que atestava os seus conhecimentos em aeronáutica e tentou entrar nas Forças Armadas. “Paradoxalmente, queria ter entrado numa escola de pilotos e não passei por questões de saúde, por causa de uma visão com uma décima a menos num olho do que o que era exigido”, lembra. Acabou por ir estudar mais. Licenciou-se no Instituto de Aviação de Moscovo e começou a trabalhar no Cosmódromo de Baikonur, o principal porto espacial soviético.

Mantinha o sonho de voar, mas teve de esperar 20 anos entre o ingresso no programa de cosmonautas e a primeira missão espacial. “Durante esses anos todos, fui trabalhando noutras áreas. Por exemplo, estive envolvido na engenharia mecânica do lançamento do Buran [o vaivém espacial soviético, concorrente do Space Shuttle norte-americano]”, disse o cosmonauta ao Observador. “Durante esses anos todos, fui analisado a nível médico e passei nos testes.” Foi ao espaço pela primeira vez em 2010, para passar 176 dias na Estação Espacial Internacional. Voltaria cinco anos depois, para a derradeira missão: um ano no espaço.

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Próxima paragem: Marte. “Estamos há demasiado tempo no planeta Terra”

O objetivo da viagem era assumido: estudar o comportamento do corpo humano em condições adversas, como são as do espaço, durante um período alargado de tempo, de modo a saber como preparar uma viagem até Marte. A verdade é que os cientistas calculam que viajar até Marte com recurso à tecnologia atual demore cerca de dois anos e meio. Pior: a tecnologia de hoje ainda não permite realizar uma viagem de ida e volta. É por isso que a viagem, para já, é uma realidade distante. Mas “possível”, garante Kornienko. “A colonização é possível”, disse o cosmonauta perante uma plateia composta por alunos e entusiastas da exploração espacial, reunidos em Coimbra para a Space Summer School, promovida pela Universidade de Coimbra e pelo Instituto Pedro Nunes.

Para já, ainda não é possível ir a Marte. “Obviamente, enquanto profissional, gostaria de participar numa missão desse género, numa viagem a Marte, mas também percebo que é inviável a curto prazo”, admite Kornienko. O russo ficará, contudo, para a história da exploração de Marte, como um dos que ajudaram a preparar o caminho. Durante o ano que passou no espaço com Scott Kelly, realizou mais de 60 experiências médicas e biológicas distintas, cujos resultados estão agora em análise pelas equipas técnicas da NASA e da Roscosmos. “Espero que o trabalho que eu e o Scott desempenhámos seja um grande contributo para essa missão, sobretudo as descobertas feitas a nível médico e biológico.”

Uma eventual viagem a Marte terá necessariamente de passar por uma cooperação estreita entre vários países, defende o cosmonauta, que viveu, na Estação Espacial Internacional, o “exemplo máximo de cooperação internacional, um lugar onde não há fronteiras”. Criado numa era de concorrência feroz entre EUA e União Soviética no que respeitava à exploração espacial, Kornienko olha para trás com um misto de sentimentos.

“Agora não há propriamente uma competição como havia nos tempos da União Soviética e do programa lunar. Agora há uma cooperação que é perfeitamente visível entre a Rússia, os Estados Unidos, a Europa… Essa cooperação é perfeitamente visível na construção da Estação Espacial Internacional”, diz ao Observador. Trump e Putin à parte, Kornienko afirma que “as duas partes, Estados Unidos e Rússia, percebem perfeitamente que a cooperação é essencial”. Mas não esquece o contributo da Guerra Fria para a evolução da exploração espacial. “A concorrência também tem muito valor. Nessa altura, houve uma grande explosão de muitas tecnologias relacionadas com a descoberta do espaço, principalmente devido àquela constante concorrência”, garante.

Com as grandes potências espaciais do mundo a trabalhar em conjunto, a chegada a Marte parece o caminho lógico. Para Mikhail Kornienko, é até urgente para a Humanidade procurar outros locais para viver. “Estamos há demasiado tempo no planeta Terra. A Terra é o berço da Humanidade. Mas, tal como um bebé não pode ficar a vida toda no berço, também nós não podemos ficar para sempre na Terra”, defende o cosmonauta, destacando que “é inevitável” que os seres humanos se aventurem no espaço.

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Um ano a olhar para o planeta ao longe. “Senti falta da própria Terra”

Quando um cosmonauta experiente como Mikhail Kornienko se apresenta perante uma plateia composta essencialmente por estudantes universitários da área da física, a tentação inicial é para que as questões do público sejam muito técnicas, como que numa demonstração de conhecimentos em frente a um júri. Mas essa fase durou muito pouco, na palestra de perto de duas horas dada pelo cosmonauta em Coimbra. Talvez com uma pequena ajuda de outros membros do público, curiosos que queriam ouvir a experiência de Kornienko, apareceram as perguntas que realmente toda a gente queria ver respondidas. Afinal, como é viver um ano no espaço? Como come? Como toma banho? Não tem medo? Não fica com saudades? Não é aborrecido?

Kornienko não fugiu a nenhuma das questões. Tomar banho? “Lá não há banheira, obviamente, por isso tomamos banho com toalhitas húmidas… Ao fim de uma semana já só sonhava com um duche e um mergulho numa piscina.” Comer? “Imaginem comer de uma lata de atum com um garfo. Agora imaginem que a lata não está numa mesa, mas sim a pairar no ar à vossa frente. A comida é muito saborosa. O pior é beber água, mas agora já há uns sistemas para isso.”

O sentido de humor — “é difícil viver sem sentido de humor, quer na Terra quer no espaço” — com que vai tirando as dúvidas mais práticas parece desvanecer-se perante questões mais profundas. “De que é que teve mais saudades?” A resposta não é a mais comum, mas impressiona: “Da Terra.”

Podia ser da família — da mulher, filhos e neto que deixou na Rússia –, de sua casa ou até de uma refeição quente completa. Ou, então, de mais pessoas, já que esteve confinado à convivência permanente com Scott Kelly e à companhia de alguns outros tripulantes de missões intermédias à Estação Espacial Internacional. Mas não: “Há um sentimento de saudade completamente diferente ao olhar para a Terra e saber que não posso estar lá”. Faltava o ambiente que nos faz sentir em casa quando estamos na Terra: as árvores, o cheiro do ar que se pode respirar à vontade, o espaço para andar. “Senti falta da própria Terra, do planeta em si.”

Estar tanto tempo num espaço tão pequeno como é a Estação Espacial Internacional, especialmente quando basta olhar para a janela para ver, na sua totalidade, o planeta em que se quer estar, pode ter implicações psicológicas bastante complicadas. “Os cosmonautas e astronautas são geralmente pessoas muito fortes psicologicamente. Somos treinados para estas situações. Mas estar lá tanto tempo é mesmo difícil”, sublinha. Acabou a pendurar imagens de árvores pelas paredes da estação, numa tentativa de tornar aquele espaço metálico mais humano.

Estudar as implicações psicológicas de uma permanência tão prolongada no espaço era outro dos objetivos da missão: para isso, os dois astronautas foram convidados a escrever um diário durante todo o tempo da estadia. Nele, deviam anotar o que faziam durante o dia e que dificuldades sentiam, se tinham saudades ou se pensavam em desistir. No fim, os apontamentos de Kelly e Kornienko seguiram para análise, nas agências espaciais dos EUA e da Rússia. Os resultados deverão apontar caminhos no que toca à preparação psicológica dos astronautas no futuro para uma viagem a Marte.

As telecomunicações ajudaram a minimizar as consequências psicológicas da missão: pelo menos uma vez por semana, Kornienko fazia videochamadas com a família, para ver a mulher e o neto. “Mas há Internet na Estação Espacial?”, ouve-se na plateia. “Sim! É fantástico. Hoje em dia, até o telemóvel posso usar na estação. Se me der o seu número posso ligar-lhe da próxima vez que for ao espaço“, disse o cosmonauta à mulher que fez a pergunta.

“Do espaço vi qual é o estrago que fazemos ao planeta”

Saudade não era, contudo, o único sentimento de Mikhail Kornienko ao olhar para a Terra pelas pequenas janelas e cúpulas da estação. “Nas viagens que fiz, vi qual é o estrago que fazemos ao planeta. Vista do espaço, a Terra parece um sítio em que o ser humano está a destruir a sua própria casa”, lamentou, dando dois exemplos bem significativos: “Veem-se as falhas na floresta da Amazónia. Quadrados enormes que já não têm árvores. E o Monte Kilimanjaro, na Tanzânia, que já não tem a cobertura de gelo que tinha em 2007″.

Depois do que viu, regressou à Terra um homem diferente, admite ao Observador. Quando volta à casa que ainda tem na aldeia onde viveu com a família, na zona dos Montes Urais, e passa pelos parques e pelo rio, leva “um saco gigante para recolher o lixo naquela zona”. E repara que “há mais gente a fazer o mesmo”. “Só quando todos nós começarmos a ter atitudes destas e toda a gente tomar consciência das medidas ecológicas que devem ser tomadas, é que realmente pode melhorar alguma coisa”, atira, argumentando de imediato que, “apesar de ser um cliché, é mesmo verdade”.

As dificuldades por que passou durante a estadia de um ano no espaço só o motivam para uma nova viagem, que irá realizar em breve. “Não só quero voltar, como vou voltar. Já passei a comissão médica e vou voltar ao espaço”, assegura. “Por enquanto, não sei qual vai ser a próxima missão nem quanto tempo vai durar, mas o objetivo é sempre o mesmo: a investigação científica. Os americanos obviamente estão interessados em estudar mais a fundo os efeitos fisiológicos e biológicos no organismo humano numa missão de um ano, por exemplo, porque não só é preciso ir para Marte como voltar de lá. Mas tudo depende daquilo que a Academia de Ciências decidir. O que não falta lá em cima é trabalho, não me vai faltar trabalho.”

Artigo Integral do Observador
Fonte: Observador

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