Morreu Boris Ieltsin, o homem que só sabia fazer rupturas
Jorge Almeida Fernandes 24 de Abril de 2007, 0:00
O antigo Presidente russo era um "destruidor genial". Dissolveu a União Soviética mas foi, a seguir, incapaz de fazer a transição.
O antigo Presidente russo, Boris Ieltsin, morreu ontem em Moscovo, aos 76 anos. Fontes médicas citadas pela agência Interfax indicaram que a morte se deveu a uma paragem cardíaca. Deixa um legado controverso. Foi o político que dissolveu a União Soviética, restaurou a Rússia, lançou reformas económicas e decretou instituições democráticas. Foi ao mesmo tempo um Presidente autoritário, padrinho daquilo a que congressistas americanos chamaram "a maior cleptocracia do mundo". Na hora de passar o poder, a 31 de Dezembro de 1999, designou como sucessor não um liberal, que o não havia, mas um outro "czar", Vladimir Putin. A primeira etapa da sua vida é a de um soviético comum. De origem camponesa, foi engenheiro civil e director de empresas. Aos trinta anos, entrou para o PCUS e fez uma rápida carreira no aparelho. A sua hora chegou com a perestroika de Gorbatchov, que o chamou a Moscovo. Depressa se tornaram rivais.
Ieltsin tinha, ao contrário de Gorbatchov, um extraordinário instinto para sentir as mudanças e sabia agir com extrema decisão. O seu percurso nos anos decisivos de 1989 a 2001 é a melhor demonstração. Apercebeu-se do desgaste e do isolamento do último secretário-geral, da aspiração à rápida mudança nas jovens gerações e da inevitabilidade da liquidação do império.
É um duplo percurso. Por um lado, assume os grandes actos simbólicos. Abandona o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), que Gorbatchov sonhava poder reformar. Durante o golpe conservador de Agosto de 1991, com Gorbatchov detido na Crimeia, torna-se no rosto da Rússia democrática, assumindo a resistência, discursando em cima de um tanque em frente ao Parlamento russo. É o herói.
Em Dezembro de 1991, perante a irrupção dos movimentos separatistas em várias regiões do império, dissolve a URSS. Note-se que reconhecera semanas antes o direito à separação dos Estados bálticos, mas tentou resistir à secessão da Ucrânia e da Bielorrússia, ambas eslavas, até os referendos independentistas a tornarem inevitável.
Por outro lado, todos estes actos têm uma segunda dimensão: a conquista do poder. O seu principal conselheiro de então, Guennadi Burbulis, defendia que a liquidação da URSS significava não apenas a salvação da Rússia, em risco de desagregação, mas também a mais rápida via de eliminação de Gorbatchov. Assim aconteceu. Boris Ieltsin tornou-se "czar" e o mais popular dos russos.
A radical liberalização da economia decretada pelo Governo de Iegor Gaidar em 1992 contrastava também com a "lentidão" ou a "indecisão" de Gorbatchov. Foi aplaudida e criou enormes expectativas. Depressa se revelou uma ilusão. Desarticulava, de facto, uma das grandes bases de poder da nomenklatura soviética. Mas o caos que se seguiu, em vez de criador, modernizando a economia, mergulhou o país em crise e provocou a primeira grande desafectação da população, subitamente pauperizada. Quando mais tarde chegou a hora das liberalizações, a velha nomenklatura e jovens especuladores repartiram o bolo entre si, num saque generalizado.
Depois de 1993
O precedente de Agosto de 1991 inspirou Ieltsin no confronto com o Parlamento hostil em 1993. "Por carácter e por instinto, e pelo seu background como apparatchik do partido, Ieltsin nunca foi um homem disposto ao compromisso ou à negociação", escreve no Guardian Jonathan Steele, que seguiu a Rússia nesses anos. Por isso, em lugar de isolar politicamente os adversários, ordenou a dissolução do Parlamento. Ganhou porque o exército lhe foi leal. Mas os 150 mortos que ficaram no terreno reabriram a tradição de autoritarismo e violência política.
A guerra na Tchetchénia de 2004 é outra fuga para a frente, tentando mobilizar o nacionalismo russo e dissipar o crescente desprestígio do poder. Mas, pela exibição de incompetência e pelos milhares de mortos russos, foi mais fiasco dos homens do Presidente.
Em 1996, Boris Ieltsin estava gravemente doente e perdia o controlo dos acontecimentos. Mas o seu afastamento seria trágico para o novo círculo que se criara no Kremlin, juntando políticos liberais, novos oligarcas, militares e veteranos dos serviços de segurança. Este grupo, que em breve os russos designarão por a "família", no sentido siciliano da palavra, garantiu a reeleição. O fantasma do regresso do comunismo legitimou a operação, que deixou marcas na limpeza da democracia russa.
A decadência
Ieltsin caminha então galopantemente para o declínio, físico e político. É um Presidente largamente ausente na sua datcha. Os jornais publicam infografias com todas suas doenças. O alcoolismo, que sempre fora público, devasta a sua imagem. O clã do Kremlin governa sem disputa.
"Ieltsin não estabeleceu um sistema democrático que lhe possa sobreviver, daí o drama das eleições. Se o Presidente muda, o sistema pode mudar. Não fez nenhum esforço para formalizar os processos democráticos. (...) Ele criou uma monarquia absoluta: quem ganha as eleições tem razão", escreveu no momento da sua demissão o jornalista Serguei Parkhomenko, do semanário Itogui e colaborador da Newsweek. O seu herdeiro foi Vladimir Putin e o sistema, de facto, mudou.
Ieltsin tinha no entanto qualidades extraordinárias que fazem dele uma personagem marcante da História russa. Sabia fazer rupturas. "Era um destruidor genial", resumiu em 2000 outro jornalista russo, Andrei Tcherkizov. "Era um democrata com uma ideologia do poderio da Rússia. Mas jamais um liberal nem um verdadeiro federalista." A sua favor, pode invocar a ausência de elites e de instituições que sustentam as democracias no Ocidente.
Se foi Gorbatchov que fez o trabalho impossível de destruir um totalitarismo a partir de dentro, foi Boris Ieltsin quem demoliu a URSS e abriu a Rússia às instituições internacionais.
"Ieltsin, infelizmente, não foi o homem" da transição na Rússia, conclui Steele.
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