A segunda morte de Jean Jaurès
António Filipe Membro do Comité Central do PCP e professor universitário
26 ABRIL 2022 9:17
O que sucede na Ucrânia é que, ao contrário do que se pretende fazer crer, a guerra não começou em 2022, mas pelo menos em 2014. Desde o célebre e celebrado golpe de Estado da Praça Maidan que a região leste da Ucrânia vive um clima de guerra permanente que se traduziu em dezenas de milhares de mortos que ninguém pode negar, mas que muita gente finge ignorar.
Em 31 de julho de 1914, em vésperas do início da I Guerra Mundial, o dirigente socialista francês Jean Jaurès foi assassinado por um jovem que o considerava germanófilo, por se opor aos preparativos para a guerra que em breve se iniciaria. O clima de ódio então gerado levou a que todos os que tentassem evitar a guerra fossem considerados germanófilos, se fossem franceses, ou francófilos, se fossem alemães.
Este dado histórico vem bem refletido no fabuloso romance "Os Thibault", de Roger Martin du Gard, que me ofereceu algumas das mais belas páginas da minha adolescência. Nesse romance, um jovem dirigente operário que se opunha à guerra e que achava que tudo deveria ser feito para evitar que os trabalhadores alemães e franceses se matassem numa guerra fraticida viu-se ostracizado e hostilizado, enquanto o movimento operário se dividia e partidos operários votavam, nos respetivos parlamentos, a favor do financiamento do esforço de guerra. Por todo o lado, o ódio falava mais alto, e a tragédia inaudita que provocou marcou para sempre a história da Humanidade.
Quando vejo o discurso de ódio que por aqui campeia em torno da guerra da Ucrânia e a rotulagem, o insulto e a deturpação do pensamento de todos os que ousam achar que a guerra da Ucrânia não pode ter uma solução militar e que em vez de alimentar a guerra o que é fundamental é lutar pela paz, fico com a sensação de estar a assistir à segunda morte de Jean Jaurès.
Nem sequer me refiro aos ataques ao PCP. Deixarei isso para uma próxima. Refiro-me aos ataques ao pensamento, a todos os que ousam levantar a voz para desafinar do orfeão e dizer que a ferida aberta no coração da Europa com a guerra da Ucrânia não se resolve a praguejar contra Putin, a erguer estátuas a Zelensky ou a apelar ao fornecimento de armas para que possamos assistir da bancada a um combate sem tréguas até ao fim do último ucraniano.
Para a maioria das pessoas, o problema tem uma simplicidade meridiana: há um agressor e há um agredido. A Rússia é agressora, a Ucrânia é agredida. Ponto final parágrafo.
Se pensarmos que a história da Ucrânia começou em fevereiro de 2022, assim é, e não deveria ter sido. A invasão é condenável e deve ser condenada. Mas a questão é, a partir daí que fazer?
Pensemos na Palestina: território ilegalmente ocupado, povo constantemente reprimido, humilhado, sujeito a bombardeamentos e a assassinatos diários pelo agressor israelita. Por muito solidário que eu seja com o povo palestiniano, e sou, não me passa pela cabeça dizer que a solução para o problema do povo palestiniano se resolve enviando-lhes mísseis, aviões, blindados ou metralhadoras para que se suicidem perante a desproporção de forças existente. O que o Médio Oriente precisa é de iniciativas sérias de paz que permitam uma convivência pacífica entre dois Estados. Tal como na Ucrânia. A solução para a paz nunca pode ser alimentar a guerra.
O que sucede na Ucrânia é que, ao contrário do que se pretende fazer crer, a guerra não começou em 2022, mas pelo menos em 2014. Desde o célebre e celebrado golpe de Estado da Praça Maidan que a região leste da Ucrânia vive um clima de guerra permanente que se traduziu em dezenas de milhares de mortos que ninguém pode negar, mas que muita gente finge ignorar. E que para esse estado de guerra permanente contribuiu decisivamente o caráter xenófobo do regime instalado em Kiev contra a população russófona da Ucrânia, o seu incumprimento reiterado dos Acordos de Minsk quanto à autonomia do Donbass e a ação de milícias incorporadas no Exército da Ucrânia que se afirmam nazis, que se fardam e tatuam como nazis, que glorificam os nazis, mas que não convém que se diga que são nazis porque agora são “dos nossos”.
Apelidar de putinistas todos os que se recusam a apoiar a ideia de que a guerra se combate com mais guerra é um insulto à inteligência. Se há um partido em Portugal que nunca teve nada a ver com Putin é o PCP. Os partidos de extrema-direita na Europa ocidental (Le Pen ou Salvini) é que sempre foram amigos políticos de Putin, por muito que os seus amigos do Chega o procurem agora disfarçar. Se alguém constituiu e presidiu na Assembleia da República a Grupos de Amizade com a Rússia de Putin nunca foi o PCP, mas sempre o PS e o PSD.
Apelidar de putinistas aqueles que acham que a NATO não é uma pomba da paz e que alertam para os perigos de envolver a Europa numa guerra contra a Rússia que pode ter consequências devastadoras é de uma insensatez quase suicida.
Achar que a guerra não é solução não é apoiar nenhum invasor. Achar que os dirigentes europeus, em vez de alimentar a ilusão de uma vitória militar impossível, com custos humanos inimagináveis, e de se envolver (nos envolver) numa guerra com consequências económicas e sociais imprevisíveis, se deveriam empenhar em encontrar uma solução que permita conciliar as pretensões de segurança de russos e ucranianos, não é apoiar nenhum invasor.
Em 1924, milhões de mortos depois de ter sido assassinado por defender a paz, Jean Jaurès foi homenageado em França e trasladado para o Panteão Nacional. Teve razão antes de tempo.
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