domingo, 5 de janeiro de 2020

OS TRÊS REIS DO ORIENTE

Os Três Reis do Oriente - Sophia de Mello Breyner Andresen
Fonte: Jardim das Delícias

Nos próximos três dias publicar-se-á, a esta hora, dividido em três capítulos, um dos mais belos contos da tradição cristã do Natal da literatura portuguesa - Os Três Reis do Oriente de Sophia de Mello Breyner Andresen. Reza a história da adoração dos Reis Magos que Gaspar era indiano, Melchior persa e Baltasar árabe. Daí a natureza da música que acompanha cada uma das partes deste conto de Sophia.




Gaspar

I

 Naquele tempo, na cidade de Kalash, o príncipe Zukarta instaurou o culto do bezerro de oiro.

A estátua poisava nas multidões submissas os seus olhos espantados, muito abertos, pintados de branco e de preto. No fundo das suas pupilas aflorava quase uma interrogação, como se a extensão do seu poder o surpreendesse. Era um jovem be­zerro de pequenos cornos torcidos e pernas musculosas, de tes­ta obtusa, curta e franzida. As suas quatro patas, firmemente poisadas na terra, davam uma grande impressão de firmeza e estabilidade que tranquilizava o coração dos seus fiéis. E em todo o seu corpo brilhava o oiro, oiro compacto, duro, pesado, faiscante.

Em frente do ídolo as mulheres curvadas sacudiam sobre o mármore claro dos degraus os sombrios cabelos quase azuis. Dos confins do deserto, dos longínquos oásis, das aldeias perdi­das, chegavam homens que depunham em frente do altar a sua oferta: vinham oferecer oiro ao oiro. E os homens bons de Kalash, juizes e chefes guerreiros, desfilavam reverentes em frente do bezerro. Atrás deles vinham os comerciantes, os vendedores, os oleiros, os tecelões. Beijavam os degraus do altar e depunham no chão a sua oferta: traziam oiro ao oiro. Até os sacerdotes da Lua e os seus fiéis e acólitos se prostravam, de joelhos, com a cabeça tocando o solo, em frente do ídolo novo de Kalash.

Zukarta olhava todas estas coisas com grande alegria, pois o culto do oiro era o fundamento do seu poder.

Raros eram aqueles que não acorriam ao templo, cada vez mais raros. Os muito pobres, os muito envergonhados, os mui­to humilhados, não ousavam apresentar-se. Eles eram como uma raça à parte, pois a pobreza era olhada como o estigma que marcava aqueles que o Bezerro não amava. No fundo das suas almas tão humilhadas que mal ousavam pensar o seu próprio pensamento, os muito pobres, os muito envergonhados espera­vam outro deus.

Eles e Gaspar.

Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:

— Porque não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a gran­deza de Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?

Gaspar respondeu:

— Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é ou­tro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.

Ouvindo esta resposta, os chefes das tribos e os homens bons de Kalash disseram:

— Separamo-nos de ti porque te separaste de nós e rene­gaste os nossos caminhos. Não terás mais parte nas nossas assembleias. Nem serás mais ouvido nos nossos conselhos, nem partilharás dos nossos festejos e banquetes. E também não te­rás lugar na nossa força. Os soldados não protegerão a tua casa nem as tuas caravanas. E serás presa fácil dos bandidos. Não receberás a protecção das nossas leis, e os nossos juizes julga­rão em sentença contra ti, e a tua razão será como um punhado de cinza. Como a gente da ralé não terás nem protecção nem defesa enquanto não te curvares perante o altar do Bezerro para adorar os ídolos que nós adoramos.

E Gaspar respondeu:

— O meu deus é em mim como uma fonte que pára de correr e é em meu redor como o muro de uma fortaleza.

Então os notáveis de Kalash sacudiram a poeira dos seus sapatos e saíram do palácio.

Depois desse dia, muitas calamidades se abateram sobre Gaspar. Os bandidos assaltaram as suas caravanas e os ladrões saquearam os seus palmares. Mãos misteriosas apedrejavam de noite a sua casa e na água das suas cisternas apareciam fru­tos podres e aves mortas a boiar.

E começou o tempo da solidão.

Nos frescos pátios do palácio não penetraram mais os visi­tantes e a água correndo nos tanques deixou de acompanhar o leve rumor das conversas. Os parentes e os amigos desaparece­ram como que devorados pela penumbra e todas as coisas pare­ciam envolvidas em escândalo e terror.

Porém o tempo crescia.

E Gaspar escutava o crescer do tempo. A solidão criava em seu redor um transparente espaço de limpidez onde os instan­tes avançavam um por um e o universo inteiro parecia atento. O silêncio era como a mesma palavra inumeravelmente repeti­da.

E debruçado sobre o tempo Gaspar pensava: «Que pode crescer dentro do tempo senão a justiça?»

 *

Ajoelhado no terraço Gaspar olhava o céu da noite. Olhava a alta e vasta abóbada nocturna, escura e luminosa, que simul­taneamente mostrava e escondia.

E disse:

— Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço ape­nas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita difícil. Mas és tu que me lês e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes.

*

Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma palavra de repente dita na muda atenção do céu.

Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas um pouco mais próxima e mais clara e que, muito devagar, deslizava para o Ocidente.

E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu palácio.

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