domingo, 5 de janeiro de 2020

OS TRÊS REIS DO ORIENTE

Os Três Reis do Oriente - Sophia de Mello Breyner Andresen

Melchior

II

A placa de barro tinha passado de geração em geração, de idade em idade, de mão em mão. Nela estava escrito que ao mundo seria enviado um redentor e que uma estrela se ergueria no Oriente para guiar aqueles que buscavam o seu reino.

A placa era um pequeno rectângulo de argila, enegrecido pelo tempo, de aspecto frágil, pobre e gasto. Era um prodígio que tivesse atravessado, sem se perder, tantos séculos de ruínas e opulências, saques, incêndios e guerras. Era um prodígio que tivesse podido atravessar sem se perder a ambição, a violência, a agitação e a indiferença dos homens.

Estava ali, no palácio, alinhada ao lado de milhares de pla­cas que enumeravam vitórias, batalhas, massacres e riquezas.

Os seus caracteres estavam semiapagados pelo tempo e a sua escrita era tão antiga que se tornava difícil decifrá-la com exacto rigor. Muitas leituras eram possíveis.

Por isso o rei Melchior convocou três assembleias de sábi­os para que juntos averiguassem qual era a justa interpretação daquele texto antiquíssimo.

Primeiro vieram os historiadores, aqueles que tinham apren­dido toda a ciência das bibliotecas e que conheciam até ao me­nor detalhe a escrita, a linguagem, os usos, os costumes, os anais e os códigos dos tempos idos.

A assembleia reuniu-se durante um mês no palácio do rei. Era o meio do Verão e o calor poisava pesadamente sobre os terraços cegos de sol. Nos jardins as palmeiras roçavam umas nas outras, com um rumor metálico, as suas folhas afiadas e duras como serras.

Ao cair das tardes os sábios sentavam-se em círculo no pá­tio interior do palácio. Melchior presidia. Um fino murmúrio de água correndo nos tanques acompanhava os debates. Os es­cravos descalços circulavam em silêncio servindo vinho de tâ­mara temperado com neve das montanhas.

O círculo de homens sentados descrevia uma área vazia e no centro dessa área tinha sido colocada uma mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro. Parecia extrema­mente pequena e insignificante, no meio de tanto espaço e opu­lência, parecia um detrito das eras antigas que ali tinha sido abandonado pelo tempo.

Durante longos debates, durante trinta dias, os sábios estu­daram e examinaram meticulosamente cada linha dos caracte­res antiquíssimos.

E ao trigésimo dia ergueu-se Negurat, arquivista-mor do templo da Lua, e disse:

— Creio que a leitura que tu, ó rei, fizeste deste texto não é a verdadeira. Pois leste: «Ao mundo será enviado um redentor e uma estrela subirá no Oriente para guiar aqueles que buscam o seu reino.» Mas verdadeiramente é outra a significação deste texto antigo: assim, os caracteres onde leste «redentor» signifi­cavam, na remota era em que foi gravada esta placa, não «re­dentor» mas sim «grande rei»; e os caracteres onde leste «será» e «subirá» não exprimem formas verbais do futuro mas sim for­mas verbais do passado; e o verbo buscar não está no presente mas sim no pretérito perfeito; e onde leste «para guiar» deverá ser lido, de acordo com os métodos de decifração dos textos antigos, «guiando». Portanto, ó rei, ao contrário daquilo que jul­gaste ler, este texto não se refere ao futuro mas sim ao passado, e não anuncia o advento de nenhum salvador, mas antes glorifi­ca as obras de um grande personagem dos tempos idos. Assim a leitura correcta deste texto é, em minha opinião, a seguinte: «Ao mundo foi enviado um grande rei que como uma estrela domi­nou o Oriente guiando aqueles que buscaram o seu reino.»

Quando Negurat acabou de falar, levantou-se Atmad, arquivista-mor do palácio, e disse:

— Grande é a ciência de Negurat. Mas a interpretação da escrita antiga tem terríveis dificuldades. Não há dúvida que no texto apresentado devemos ler «grande rei» e não «redentor». No entanto, não concordo com aquilo que diz respeito às for­mas verbais: creio que o verbo ser e o verbo subir se encontram realmente no futuro. E também discordo da forma como foram lidas as palavras «guiar», «buscam» e «reino». E penso ainda que o verbo «subir» tem aqui o sentido de «dominar». De for­ma que, na minha opinião, a leitura correcta do texto é esta: «Ao mundo será enviado um grande rei que como uma estrela dominará o Oriente para engrandecer aqueles povos que acei­tarem o seu poder.» Pois esta inscrição é de facto uma profecia, mas uma profecia que já foi cumprida. É evidente que o grande rei é o grande Alexandre que dominou todo o Oriente até ao reino de Pórus e que morreu, como sabeis, em Babilónia.

E quando Atmad acabou de falar, levantou-se o velho sábio Akki, que disse:

— Admirei as sapientes palavras que ouvi. Mas na verdade a leitura deste antiquíssimo texto levanta tantas dúvidas e são tantas as interpretações que podemos propor, que verdadeira­ mente, ó rei, nada podemos concluir.

Então levantou-se Melchior e disse:

— Ide em paz e continuai os vossos estudos. Eu continuarei a perguntar, a escutar e a esperar.

E no mês seguinte reuniu-se no palácio real a assembleia dos letrados.

Melchior propôs-lhes as dúvidas e as interpretações dos historiadores e durante trinta dias os letrados estudaram o tex­to.

E no trigésimo dia, ao cair da tarde, estando todos sentados em círculo e estando no meio do círculo a mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro, levantou-se Ken-Hur e disse:

— A poesia não se exprime directamente. Ora o texto que temos em nossa frente é um poema e por isso mesmo deve ser tomado como um metáfora que não se refere nem ao passado nem ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos, mas só ao mundo interior do poeta, que é o mundo da poesia sempre voltado para o devir e para a esperança. Este texto não fala de factos reais e apenas simboliza o espírito criador do homem.

Falou em seguida Amer, que disse:

-  Este texto é um poema e coloca-se por isso à margem do vivido. O poema não se refere àquilo que é, mas sim àquilo que não é. Pois a natureza é uma caixa cheia de coisas da qual o poeta extrai uma coisa que lá não está.

E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse:

-  Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é ele próprio o seu próprio sentido. Assim o sentido de uma rosa é apenas essa própria rosa. Um poema é um justo acordo de palavras, um equilíbrio de sílabas, um peso denso, o esplen­dor da linguagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si próprio e, como um círculo, define o seu próprio es­paço e nele nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa, o poema cria.

E tendo terminado o debate, lèvantou-se Melchior, que dis­se:

— Eu vos agradeço as vossas palavras. Por mim continua­rei a buscar, a escutar e a esperar.

Então retiraram-se os letrados e o rei ficou sozinho no pá­tio, em frente da placa de barro, escutando o correr da água e o cair da noite.

E no mês seguinte reuniram-se no palácio os homens sapientes. Melchior propôs-lhes as dúvidas dos historiadores e dos letrados e a nova assembleia deliberou durante trinta dias. E no trigésimo dia levantou-se Kish, que disse: — As multidões ignorantes curvam-se em frente dos ído­los, mas aqueles que meditam conhecem a solidão do universo. Que redentor poderemos esperar? O universo é como uma má­quina bem regulada que sem princípio nem fim gira lentamente através das idades e dos ciclos. Nas constelações e nas luas, nos triângulos e nos círculos, encontrarás as leis dos números que se cumprem e se cumprirão inexoravelmente. Que reden­ção poderemos esperar?

E falou depois Maro, que disse:

— Os deuses que existiram extinguiram-se há muito e aquilo que adoramos é apenas a cinza do divino. Qual é, na idade em que vivemos, o homem que viu um anjo? Onde está aquele que ouviu, com os seus ouvidos de carne, a palavra de Isis ou de Assur? Vivemos um tempo de viuvez e todas as coisas se torna­ram cegas e surdas. Num mundo de injustiça e de desordem tentamos sobreviver como animais perseguidos. Quebrou-se o laço que nos ligava ao universo atento. Podemos bater com os punhos na terra, podemos implorar com a cabeça tocando a poeira. Ninguém responderá. Cegou o olhar que nos via e o ouvido que nos escutava secou. Tudo nos é alheio como um lugar que não nos reconhece. E o brilho dos astros impassíveis cintila sobre a nossa tristeza. Quem pode esperar que uma es­trela se mova?

Falou em seguida Tot, e disse:

— Nascemos para morrer. Toda a nossa esperança se resol­verá em cinza. Onde está o homem que não morreu? O próprio Alexandre, filho de Amon, que estabeleceu o seu Império des­de o Egipto até ao reino de Pórus, morreu miseravelmente nos palácios da Babilónia. E no entanto a sua radiosa juventude parecia mostrar a natureza de um Deus, e era tão grande a sua perfeição que ninguém a podia julgar mortal. Quem poderia acreditar que morresse o seu corpo equilibrado e liso como uma coluna, a sua inteligência aguda e limpa como o sol, o seu olhar direito que simplificava todas as coisas, o seu rosto brilhante como um estandarte e a sua alegria invencível? Alexandre, prín­cipe da Macedónia, filho de Ámon, maravilhamento dos po­vos, conduziu o destino do homem a seus últimos limites, de tal forma que nele todos julgaram que a natureza humana tinha conquistado o divino. Mas Alexandre morreu no trigésimo ter­ceiro ano da sua vida, no cimo da sua força e da sua glória, em pleno esplendor da sua juventude. E assim os deuses nos disse­ram que o homem não pode ultrapassar o seu destino, e que o seu destino é um destino para a morte. Por isso, ó rei, que pode­remos esperar? Nada pode modificar a condição do homem e nesta condição não há lugar para a esperança.

Quando os pensadores se retiraram, Melchior levantou-se do trono e avançou até à mesa de pedra. Entre as grandes colu­nas que rodeavam o pátio, a placa de argila parecia extraordi­nariamente frágil e pequena. Mas o rei tocou com a sua fronte as letras quase apagadas.

Nessa noite, depois da Lua ter desaparecido atrás das mon­tanhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a Oriente, uma nova estrela.

A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava. Só de longe em longe se ouvia, vindo das mura­lhas, o grito de ronda dos soldados.

E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labi­rinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria.

E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.

(continua)

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