sábado, 16 de agosto de 2014

DÓRIS GRAÇA-DIAS

«DÓRIS GRAÇA-DIAS (1963-2014)
Numa sequência de dias cheios de notícias sobre a morte de figuras de fama internacional, passou quase despercebida a morte de Dóris Graça-Dias. Era professora, escritora e crítica de literatura. 
Não a conheci pessoalmente, nem conheci, até agora, a sua obra. Apesar disso, resolvi escrever também umas palavras sobre o seu desaparecimento físico, motivado por um pormenor que li numa das páginas dos vários amigos que a homenagearam.

Dóris Graça-Dias escreveu, um dia, no "Expresso", sobre um livro de Miguel Sousa Tavares:
"Uma obra menor, tão igual a um qualquer exercício de menino de escola semi-deitado de lado sobre o papel, trincando a língua num esforço de saliva e olhos estrábicos confluindo no bico da caneta. 'Bela Redacção!': diz o professor, relativizando o esforço e a idade do garoto."
O prémio por esta desassombrada opinião… foi ser afastada do jornal (e viva a liberdade!).
Como as injustiças se abatem sobre o mundo quase sempre em grupo, quando não é mesmo em manada… ela morreu e ele ficou cá… a escrever as suas "redacções" e, sobretudo, a debitar televisivas e intermináveis baboseiras!
Não! Isto não é uma sugestão para uma "troca"… é apenas a constatação de um facto.
Se o "aperitivo" sobre a crítica do livro do MST vos fez querer ler o resto… basta ir aqui abaixo, onde, já que o link, pelos vistos, não funcionava a não ser comigo  … decidi "colar" o texto completo. Boa leitura!
CRÍTICA ARRASADORA A UM LIVRO DE 900 GRAMAS DE UM «POSEUR»
TEXTO DE DÓRIS GRAÇA DIAS«Rio das Flores»de Miguel Sousa TavaresOficina do Livro, 2007632 págs., € 29
Anunciada como obra de mais de 600 páginas, com uma tiragem de 100 mil exemplares, esta, antes de ser já o era: «As pré-vendas on line do novo romance de Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores, registaram mais de mil encomendas durante as primeiras 24 horas, um facto inédito para um autor português. O livro, cujo lançamento está marcado para dia 25 de Outubro, só chega às livrarias no dia 29». Informava a editora a 19 daquele mês. Fomos pesá-lo numa simples balança de cozinha - fazia-nos falta este elemento informativo: 900 gramas. Suspense, marketing, quantidade, peso... faltava só verificar o que em literatura parece ser perfeitamente secundário: a qualidade.Isso aí, isso aí... já nos parece mais subjectivo. Será? Comecemos pelos pastiches. E que tal uns «vencidos da vida» transpostos para fins de 1920? Não se chamam Carlos nem Ega, mas enfim, ecoa ali Eça que é um mimo. E um cheirinho a faenas, a caça às perdizes - tão do gosto da pessoa do autor (que maldade confundir egos e alter egos, mas há quem se ponha a jeito) -, coisas de homem, muito lido em Hemingway (cá entre nós, que ninguém nos ouve, um Nobel uma bocadito forçado)? Mas enquanto Hemingway nos faz balançar e zangar nos nossos «parti-pris» (mais uns) relativamente a touradas, caçadas, pescarias e coisas afins, com MST ficamos na mesma. Nenhuma simulação de exaltação, nenhuma garra, nenhuma inspiração; o que temos é uma morna descrição de gestos pouco cinematográficos, um descritivo meio jornalístico, longínquo ainda do despachado Hemingway.
E por falar em descritivo meio jornalístico, este romance, que nas palavras do próprio autor se deseja histórico, quando entra por esse caminho, regista um tom de Selecções do Reader's Digest. Por vezes, parece que estamos numa sala de cinema nos anos 60, vendo e ouvindo os registos informativos que a censura nos impingia antes de um qualquer Música no Coração; outras, lembra-nos certos programas televisivos em que vemos imagens em movimento muito queimadas de um qualquer "raid" aéreo da 2ª Guerra Mundial acompanhadas de sínteses vocálicas bem colocadas mas, contudo, sínteses.Quanto às variantes descritivas de centros históricos, áreas urbanas, edifícios-chave, o tom é de prospecto turístico, onde não falta a curiosidade histórica, a anedota com personalidade internacional, a listagem de um menu, estilo: quando ir, como ir, onde ficar, o que e onde comer. Já agora convém referir que os citados hotéis Negresco e Carlton ficam, respectivamente, em Nice e em Cannes, daí que dizer que o arquitecto francês Joseph Gire, autor da «arquitectura do Copacabana Palace [se inspirara] nas do Negresco e do Carlton, de Nice» (pág. 327) tem qualquer coisa, no mínimo, de precipitado. E inútil, já que quem conhece, conhece; quem não conhece, fica na mesma.
Romance, romance... como a palavra anda desgastada. Quanto mundo é preciso percorrer, aprender, ter para escrever um romance. Quanta atenção é preciso despender, quanta imaginação converter, quanta distância compreender. Criar personagens não se basta por um acumular de lugares comuns, somando diferenças ilustrativas de tipos; há que não ser anacrónico na linguagem, nas exigências existenciais, nos enquadramentos territoriais. Se se pretende descrever uma mulher, convém olhar bem para elas, sob pena de se ser apenas grosseiro, quando se pretendia ser airoso. Para escrever um romance há que ser um «flâneur» e não um «poseur». Ou seja: perder-se e não julgar-se, à partida, encontrado.
Tudo o que MST disser sobre a sua própria escrita, o seu romance histórico é gratuito. Que o escreveu a pedido de muitas famílias, que passou três anos muito duros, quase dois a documentar-se e um fechado em casa a escrever, sem viajar: nada disto interessa a um leitor; nada disto interessa à literatura. É exactamente esta inversão de valores que faz de «Rio das Flores» uma obra menor, tão igual a um qualquer exercício de menino de escola semi-deitado de lado sobre o papel, trincando a língua num esforço de saliva e olhos estrábicos confluindo no bico da caneta. «Bela Redacção!», diz o professor, relativizando o esforço e a idade do garoto.
Mas MST não é um garoto e se quer usar o seu nome, devia exigir mais de si do que a simplicidade de uma obra pretensamente bem engendrada. Em literatura isso não existe. Se pretende fixar história, nada como perder três, seis, doze anos a estudar uma época, para a registar - em 100 páginas; se quer escrever um romance, nada como reflectir sobre o que é a literatura, ler muito, e bem, que é como quem diz: perder-se. E se nunca se conseguir encontrar para escrever, ninguém lho levará a mal!
Dóris Graça Dias»
Por Samuel Quedas

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