«O CASO DO ANÚNCIO ENCRIPTADO _ A NOTÍCIA ENCAPOTADA (*)
Em 25 de Março de 1949, são presos no Luso Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, clandestinos do PCP.
O director do jornal "O Primeiro de Janeiro", Pinto de Azevedo, naturalmente, nada sabe sobre a detenção dos três membros do PCP.
E, no entanto, pela porta do seu jornal, entra uma mulher de compleição frágil, mas determinada, que não nos custa a imaginar caminhando, em passo resoluto, para o lucrativo serviço de venda de classificados do jornal, serviço esse que, com frequência, gera filas de empresas e particulares desejosos de publicitar nestas páginas. Essa mulher é a engenheira Virgínia Moura (1915-1998) que, quatro dias depois das detenções do palacete do Luso, vai desempenhar um papel curioso neste episódio.
Recuemos. Desde o grito de Luísa Rodrigues na manhã do dia 25 que os reclusos tentam avidamente confirmar o nome das três pessoas para as quais começa agora um calvário de semanas de tortura e interrogatório. A organização policial está eufórica em Lisboa e no Porto. Mário Soares lembra, em Portugal Amordaçado (1975), que, por estar detido em Caxias desde Fevereiro, escutou chalaças e provocações da boca dos carcereiros, bem como insinuações de que, entre a documentação apreendida no Luso, constavam provas contra si. Jaime Gomes da Silva, recém-promovido a chefe de brigada, recebe múltiplos elogios pela eficácia da operação no Luso (Fernando Gouveia, Memórias de um Inspector da PIDE). No seu trabalho de longo fôlego sobre a vida de Álvaro Cunhal, Pacheco Pereira provou que a PIDE sabe que, depois de quatro anos de acumulação de conhecimento e informação sobre o PCP, estudando delações e respostas dos detidos e padronizando as detenções, esta operação resultou do investimento na detecção dos cuidados conspirativos.
No exterior, porém, nada se sabe. Na clandestinidade, não há contactos diários, mas uma notícia desta envergadura tende a fugir como o vapor numa panela de pressão. A primeira pista provém de uma empregada de limpeza [cujo nome não é conhecido] que trabalha na sede da PIDE e «que nos ajudava quando podia» (Virgínia Moura, Mulher de Abril). É ela que confidencia a Virgínia Moura e ao marido, o arquitecto António Lobão Vital, que Cunhal é um dos detidos.
[A partir daí, há várias versões: Pacheco Pereira (no terceiro volume de Cunhal, Uma Biografia Política) indica que o exterior recebeu a confirmação através das esposas do advogado Armando Bacelar e do matemático Santos Simões, depois das visitas destas aos seus maridos. Em documento pouco citado, porém, Manuel de Azevedo, jornalista e membro do PCP, contou que a confirmação proveio de um advogado preso. O processo foi invulgar: «um bilhete metido no tacho de comida», através do qual confirmou «que sempre era Álvaro Cunhal um dos presos pela PIDE do Porto». Não se sabe se os nomes de Militão Ribeiro e Sofia Ferreira também constavam da informação. Manuel de Azevedo assegurou que não e que «não se pôde por isso salvar a vida desse outro secretário do Partido Comunista, que viria a ser torturado até à morte» – embora Militão sobrevivesse nove meses na prisão até à sua morte em 3 de Janeiro de 1950, «entre o assassínio por negligência médica e o suicídio» (Pacheco Pareira, opus cit., volume II).
Quatro pessoas no Café A Brasileira, da Rua Sá da Bandeira, ponderam as suas opções. Virgínia Moura, Lobão Vital, Manuel de Azevedo e Osvaldo Santos Silva temem que, se o silêncio prevalecer, os detidos possam ser espancados até à morte. Receando os ouvidos indiscretos, saem do café e caminham até à Menina Nua, a estátua da Juventude, de Henrique Moreira, discutindo «várias hipóteses mais ou menos impraticáveis». Acabam por concluir, como n’O Escaravelho de Ouro de Edgar Allan Poe (1843), que o melhor sistema é uma mensagem à vista de todos num jornal que todos leiam: O Primeiro de Janeiro.
Redigem por isso uma mensagem que, do ponto de vista da encriptação, possa ter dupla valência: por um lado, não desperte o alerta dos empregados do jornal que processam os classificados; por outro, que possa ser descodificada após publicação.
Escrevem então um anúncio de 8 centímetros por cinco:
«Álvaro Cunhal Duarte
Advogado (Rua do Heroísmo)
Vem por este meio agradecer a todos os seus Amigos os cuidados manifestados pelo seu estado de saúde, na impossibilidade de o fazer pessoalmente.»
Diabolicamente simples. Ao nome do secretário-geral do PCP, acrescentaram-lhe «Duarte», o nome mais conhecido usado por Cunhal na clandestinidade e que a própria PIDE, segundo o inspector Fernando Gouveia, já conhece desde 1945. A sugestão de que o escritório de advocacia funciona na Rua do Heroísmo é naturalmente irónica, pois remete para a sede da PIDE. E a referência velada ao estado de saúde sugere que os amigos de Cunhal temem pela sua saúde. O anúncio resulta em cheio. Têm sorte porque o dia não se mostrou muito agitado no departamento comercial, pois não é raro que um anúncio seja preterido para o dia seguinte por falta de espaço. Bancos e seguradoras perdem vez e não se queixam. As regras da casa mandam apenas que os obituários sejam sempre aceites. Os restantes anúncios estão dependentes do humor de Rafael Silva, chefe da tipografia e principal responsável pela arrumação gráfica de notícias, fotografias e anúncios nas páginas do jornal. «O director tinha muita confiança no Rafael e ele merecia essa confiança», resume Abílio Marques Pinto. Neste dia, o anúncio é aceite sem demoras.
O grupo repete o processo à pressa, incluindo no Jornal de Notícias um anúncio idêntico, ao qual, por lapso, falta a referência à Rua do Heroísmo. E espera.
Na noite do dia 30 de Março, a data de publicação, o pai de Cunhal, o advogado Avelino Cunhal, procura o engenheiro Ruy Luís Gomes, depois de ter lido o anúncio que, naturalmente, lhe chamou a atenção. Teme que lhe digam que o filho já foi morto e fica reconfortado quando escuta a verdade. Mas outros olhos reagiram igualmente com estranheza ao caso.
Na redacção de A Voz, diário católico de inspiração monárquica onde aliás António Oliveira Salazar chegou a publicar algumas crónicas, o anúncio foi detectado. Não se sabe se partiu da PIDE a iniciativa de informar o jornal ou se foi o «faro de reporters dignos desse nome» que juntou as pontas soltas e percebeu a notícia escondida. No dia 31, o jornal dirigido por Pedro Correia Marques contou a sua saga, trazendo eco (como todos os matutinos) da notícia da detenção de Cunhal e Militão (Sofia Ferreira não é mencionada). «Segredos de dois, segredos de todos e, ao fim da tarde, após habilidosas diligências, estávamos na presença do Inspector Superior da PIDE, sr. Capitão José Catella, a quem solicitávamos esclarecimentos a propósito do estranho anúncio.»
Colocado perante a inevitabilidade da divulgação, Catella chamou todos os jornais e confirmou a detenção, revelando o seu lamento de que «se perdesse por tão ínvios caminhos um rapaz que poderia ser cidadão prestimoso (…) apesar de todas as influências benéficas que intentaram levá-lo a arrepiar caminho». A notícia (que parece suspeitosamente igual em quase todos os jornais) sugeria que os dois «perigosos conspiradores» tinham confessado responsabilidades na «direcção do Partido Comunista», o que era manifestamente falso. Enfatizava o luxo do palacete do Luso, exagero lírico numa casa onde faltava tudo. E A Voz não perdeu ensejo de terminar com uma lição, atribuindo-a a um repórter na sala: «Como é que o general três pontinhos se meteu com essa gente?» Era um remoque sobre a plataforma eleitoral do MUD, encabeçada por Norton de Matos e que juntou todas as forças democráticas até à sua desistência, semanas antes das eleições, em Fevereiro de 1949.
Até prova em contrário, Pinto de Azevedo foi pouco incomodado apesar da publicação do anúncio nas suas páginas. Manteve até ao fim porém a sua oposição discreta ao regime, sofrendo na pele várias repercussões. Nuno Rocha lembra-se de os cabelos brancos do director reflectirem «muitos anos de desilusões e de sofrimentos: «Lembro-me de o ver aos domingos, a pôr os óculos grandes e a subir para a mota que comprara com enormes sacrifícios, partindo da Rua de Santa Catarina para Torres Novas, onde ia ver a mulher que para ali haviam desterrado os lacaios dos correios [onde ela trabalhava] sob a ordens da PIDE». Pouco antes do 25 de Abril, os dois reencontraram-se no café Vavá. Pinto de Azevedo exibia «a face coberta de martírio, pois a filha havia sido detida pela PIDE e acabara de entrar no Hospital Júlio de Matos vítima de uma depressão nervosa cujas consequências os médicos ainda não previam». Viria a falecer.
(*) O anúncio em O Primeiro de Janeiro de 30 de Março de 1949, disfarçado entre anúncios de ferros de brunir e serviços de serralharia.
HP»
A partir de "O caso do anúncio encriptado e outras histórias do Primeiro de Janeiro", in
http://bit.ly/1Wmqt8E
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