terça-feira, 12 de abril de 2016

BARREIRAS ECOLÓGICAS

«Vítimas do asfalto

As rodovias matam milhões de animais

Embora cada vez menos, as estradas matam um número assustador de pessoas todos os anos. Porém, são igualmente responsáveis pela morte de inúmeros animais selvagens. O biólogo Jorge Nunes revela os efeitos do tráfego automóvel sobre a nossa fauna, incluindo espécies ameaçadas e em risco de extinção. Se vai conduzir, não se esqueça dos bichos.

A mortalidade da fauna selvagem causada por atropelamento é certamente uma realidade tão antiga como a invenção da própria roda. No entanto, esta situação tem vindo a agudizar-se com o crescimento e a complexidade da rede viária e com o aumento do tráfego rodoviário. Se há umas dezenas de anos atrás o seu efeito era irrelevante, nas últimas décadas passou a ser considerado como um importante fator de ameaça para a conservação de algumas espécies faunísticas. Hoje, já não há dúvidas: as estradas matam milhões de animais todos os anos.

O problema não é novo. Após ter sido ignorado durante muito tempo, começou a merecer a atenção dos investigadores. Os Estados Unidos foram pioneiros nestes estudos, a partir de 1927. Seguiram-se, no contexto europeu, a Dinamarca (1959), o Reino Unido (1960), a Alemanha (1964), a Suíça (1966), a Áustria (1975) e França (1976). Em Espanha, principiaram em 1990, com o Proyecto de Seguimiento de la Mortalidad de Vertebrados en Carreteras. Tal como já se tinha verificado noutros países, também em território espanhol a situação se revelou preocupante: dados recolhidos durante três anos permitiram estimar que cerca de dez milhões de animais (valor sensivelmente idêntico à população portuguesa) morriam atropelados anualmente.

Em Portugal, a investigação deu os seus primeiros passos em 1994, com o biólogo José Silva Marques. O seu trabalho, Vertebrados Mortos por Atropelamento – EN118, fez a radiografia de um troço de 20 quilómetros daquela estrada nacional, numa área limítrofe da Reserva Natural do Estuário do Tejo. Num perío­do de monitorização que decorreu durante aproximadamente um ano (entre outubro de 1991 e novembro de 1992), com uma frequência de amostragem semanal, foram detetados 600 vertebrados atropelados, dos quais 360 aves (pertencentes a 40 espécies diferentes), 169 mamíferos (15 espécies), 70 répteis (seis espécies) e um anfíbio (salamandra-de-pintas-amarelas). Pode não parecer muito, mas, se esmiuçarmos alguns desses valores, como o das aves, por exemplo, verificamos que foram mortas 57 corujas-das-torres, dez corujas-do-mato e oito mochos-galegos. Tendo em conta que estas rapinas noturnas são predadores de topo, que têm densidades populacionais bastante reduzidas, estes passam a ser números bastante significativos e preocupantes. Refira-se, ainda, que em quase todos os grupos faunísticos considerados se detetaram espécies raras ou em vias de extinção.

Apesar de ter sido aberta a porta para uma nova linha de investigação, o número de estudos realizados por cá tem sido reduzido e bastante disperso, tanto no tempo como no espaço. Segundo dados disponibilizados pelo Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, entre 1994 e 2008, fizeram-se quinze investigações, embora apenas doze possuam dados publicados.

Radiografia das rodovias

Em 2000, a bióloga Inês Franco deu a conhecer os resultados do seu trabalho Aspetos Ecológicos da Mortalidade de Vertebrados em Rodovias do Interior Alentejano. Ao percorrer mensalmente (de janeiro a outubro de 1999), de bicicleta, três troços de 7,5 km cada, obteve os seguintes dados: na estrada EN258 (Barrancos): 105 vertebrados atropelados; na EN260 (Serpa): 231; na EN114 (Évora): 523, dos quais 194 aves, 68 mamíferos, 61 répteis e 200 anfíbios.

Em 2001, surgiram mais dados da região alentejana através de Fernando Ascensão: Mortalidade de Vertebrados por Atropelamento em Estradas do Alto Alentejo. Ao palmilhar quinzenalmente três troços de cerca de 25 km cada, obteve resultados igualmente inquietantes. No IP2 (Portalegre–Monforte), entre março de 1995 e março de 1997, contabilizou 2377 vertebrados atropelados: 681 aves, 177 mamíferos, 157 répteis e 1362 anfíbios. Num outro troço do mesmo IP2 (entre São Manços e Portel), de janeiro a julho de 2000, registou 368 cadáveres: 177 aves, 75 mamíferos, 21 répteis e 47 anfíbios. Entre outubro de 1999 e julho de 2000, assinalou na EN4 (Vendas Novas–Montemor-o-Novo) mais 734 mortos (332 aves, 194 mamíferos, 21 répteis e 123 anfíbios).

O mais dramático é que nem as áreas protegidas escapam à mortandade. Entre março de 2000 e novembro de 2001, José Carlos Brito percorreu, seis vezes por mês, 12 km da EN308-1 (no Parque Nacional da Peneda-Gerês), tendo encontrado atropelados cinco aves, nove mamíferos, cem répteis e 95 anfíbios. Entre maio de 2000 e novembro de 2001, Francisco Alvares calcorreou, três vezes por mês, 12,5 km da EN308 (também no PNPG), tendo visto mortos na estrada 27 aves, cinco mamíferos, 34 répteis e 96 anfíbios.

No nordeste transmontano, mais precisamente no Parque Natural do Douro Internacional, foram os estudos de Carlos Santos, desenvolvidos entre janeiro e dezembro de 2001, com uma periocidade quinzenal, que deram a conhecer a situação. Na estrada EN221 (troço de 19 km entre Sendim e Miranda do Douro), foram encontrados 1001 vertebrados atropelados: 154 aves, 50 mamíferos, 21 répteis e 776 anfíbios. Com base nestes dados, o investigador estimou que, apenas naqueles 19 km, terão morrido, durante o ano de 2001, mais de 7800 vertebrados. Já na estrada EM595 (18 km entre Bemposta e Paçó), encontrou 13 aves, cinco mamíferos, 12 répteis e cem anfíbios.

Seja onde for que se façam investigações, no norte ou no sul do país, no interior ou no litoral, nas planícies cerealíferas do Alentejo ou nas áreas florestais do litoral centro, os números obtidos são sempre aterradores. O trabalho Impact of Two Forest Roads Upon Wildlife After a Road Pavement Change in a Coastal Area in the Center of Portugal, publicado em 2005, pela Sociedade Portuguesa de Vida Selvagem, veio mostrar que até nas dunas de Mira, em apenas 13 km de asfalto, morreram (de setembro de 1996 a agosto de 1997) 65 aves, 31 mamíferos, 51 répteis e 677 anfíbios. E, na mesma região (nas estradas EN114, EN370, EN4), entre 2005 e 2007, foram encontrados 101 morcegos atropelados. Apesar de estes constarem do grupo de mamíferos mais abundante no nosso país, com 27 espécies conhecidas, a maioria tem estatuto de “em perigo” ou “vulnerável” e estão todas protegidas por legislação nacional e internacional.

Obituário faunístico

Os morcegos, no entanto, são apenas um dos muitos exemplos da matança indiscriminada perpetrada nas estradas portuguesas, que tanto ceifam bichos comuns, como cães, gatos, pardais e pombos, como animais ameaçados de extinção e protegidos por lei, como linces, lobos e víboras, entre muitos outros.Embora o número de estudos seja reduzido, os resultados obtidos apontam para um padrão semelhante ao de outros países: o atropelamento afeta um grande número de espécies e os anfíbios e as aves encabeçam a lista negra.

A singularidade dos animais de vida dupla (significado da palavra “anfíbio”), em que o ciclo biológico se divide entre a terra (geralmente no estado adulto) e a água (na fase larvar), torna-os bastante vulneráveis. Dado necessitarem de meios aquáticos para depositarem os ovos e completarem a fase larvar, veem-se muitas vezes obrigados a atravessar rodovias para chegarem aos ribeiros, lagos e charcos, sobretudo na época de reprodução. Atendendo ao seu pequeno tamanho e à lenta movimentação, acabam por ser presas fáceis; os condutores, geralmente, nem se dão conta da mortandade que deixam atrás de si.

Passando os olhos pelo artigo El Impacto de las Carreteras en las Poblaciones de Anfibios, publicado em 2001 na revista espanhola Quercus, fica-se com uma ideia da gravidade da situação. Por exemplo, na Dinamarca, estimou-se que todos os anos morriam pelo menos 15 milhões de anfíbios. Outros estudos demonstraram que uma intensidade de tráfego de 60 veículos/hora, num dado local, pode causar uma mortalidade de 90% de uma população em migração. Ou então, que bastariam apenas 26 veículos/hora para matar todos os anfíbios que cruzassem uma determinada estrada durante a noite (período em que geralmente os anfíbios se movimentam).

Ainda mais alarmantes foram os resultados de outras investigações. Por exemplo, na Suí­ça, em 1987, após ter sido quantificada uma população de 500 sapos-comuns antes de se construir uma estrada, verificou-se que ao fim de três anos restava apenas 40% da população original, e onze anos mais tarde ela havia sido completamente extinta como consequência dos atropelamentos. Na Galiza, em 1993, constatou-se que uma única estrada nova foi responsável pela morte de 12 mil animais, dos quais 60% pertenciam a uma única espécie, o tritão-de-ventre-laranja, que por sinal só ocorre na zona oeste da península Ibérica.

Os estudos portugueses, infelizmente, afinam pelo mesmo diapasão: o número de anfíbios encontrados mortos é, no geral, mais do dobro do segundo grupo mais afetado, as aves. No estudo referido para o IP2 (Portalegre–Monforte), os anfíbios corresponderam a 57,3% do total de registos (1362 indivíduos de onze espécies), sendo o sapo-corredor o mais atingido, com mais de quatrocentos animais atropelados. Uma outra investigação alentejana, realizada em apenas 7,4 km da EN114 (Évora), permitiu constatar que os anfíbios correspondiam a 69% do total de registos (584 indivíduos).

Mais a norte, em pleno Parque do Douro Internacional, os dados recolhidos na estrada EN221 (troço de 19 km entre Sendim e Miranda do Douro) também foram pouco animadores para este grupo de vertebrados: 77,5% do total de registos, o que equivale a 776 animais trucidados de doze espécies diferentes, sendo o sapo-de-unha-negra o mais afetado, com cerca de trezentas vítimas. O mais incrível é que 58% dos registos (180 indivíduos) dessa espécie provêm de um único quilómetro da rodovia.

No entanto, bastaram apenas 13 km de ­duas estradas florestais das dunas de Mira para arrecadar o pódio dos locais estudados mais mortíferos para os anfíbios: 81,5% do total de registos. Conclui-se assim que os animais que vivem com uma pata na terra e outra na água têm um modo de vida pouco recomendável, sobretudo quando alguém se lembrou de construir uma estrada a separar os seus habitats terrestre e aquático.

Vítimas aéreas

Para quem se desloca pelo ar, a vida também não se afigura fácil, principalmente quando se trata de atravessar estradas. Que o digam as aves, que ocupam o segundo lugar dos animais mais dizimados pelos automóveis. Em alguns locais, chegam mesmo a tomar a dianteira, como aconteceu nos estudos pioneiros de José Marques, nos quais 60% das vítimas eram aves de 40 espécies diferentes. O mesmo aconteceu nos trabalhos de Fernando Ascensão, levados a cabo no IP2 (São Manços–Portel), onde atingiram os 66%, ou na EN4 (Vendas Novas–Montemor-o-Novo), onde chegaram a 45% dos cadáveres.

As espécies mais afetadas são naturalmente as que vivem associadas à vegetação das bermas das estradas, sobretudo passeriformes (com valores que oscilam entre os 15% do estudo de Carlos Santos, os 37% do de Inês Franco e os 70% do de José Marques), como o pardal-comum, o pintassilgo, o cartaxo-comum, o pisco-de-peito-ruivo e diversas toutinegras e chapins, entre muitas outras, ou aquelas que sobrevoam frequentemente as estradas à cata de insetos, como acontece com as andorinhas e os noitibós. Estes últimos, em particular o noturno noitibó-de-nuca-vermelha, têm ainda o mau hábito de pousarem nos caminhos de terra batida e no asfalto, confiando na sua plumagem mimética para passarem despercebidos. Lamentavelmente, nem sempre conseguem levantar voo a tempo de evitarem os veículos.

Também as aves de presa e necrófagas, que utilizam as estradas para caçar ou encontrar cadáveres, como as rapinas e os corvídeos, apresentam risco elevado de atropelamento. As diurnas (águias, milhafres e falcões) parecem estar mais imunes ao problema do que as suas congéneres noturnas (sobretudo corujas e mochos), que figuram entre as principais vítimas com penas. Isto porque vão muitas vezes alimentar-se nas estradas, tanto de animais mortos como de presas que também utilizam os corredores rodoviários, ficando sem reação quando são encandeadas pelos faróis.

Já que estamos no meio aéreo, falemos dos morcegos, que, como é sabido, são mamíferos voadores. Embora todas as espécies sejam suscetíveis de atropelamento, obviamente que as que voam a baixa altitude são as mais vulneráveis. Vários estudos, realizados principalmente em Espanha, mostraram que as rodovias podem causar uma elevada mortalidade nestes animais, podendo atingir em alguns sítios mais de 30% dos mamíferos selvagens vitimados.

No Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, o atropelamento surge como um dos fatores de ameaça para várias espécies de quirópteros, como o morcego-de-ferradura-grande, o morcego-de-ferradura-mourisco, o morcego-de-ferradura-mediterrânico e o morcego-negro, entre outros. As zonas urbanas e periurbanas e as zonas húmidas, geralmente usadas como territórios de caça, são as áreas com maior registo de atropelamentos.

Passadeiras para quê?

Se as aves e os mamíferos alados atravessam as rodovias de qualquer forma, sem respeitar a sinalização, tanto vertical como horizontal, o mesmo acontece com os répteis e os mamíferos não voadores, que também ignoram as passadeiras.

As criaturas reptilianas costumam representar uma pequena fração (até 12%) do total de vertebrados atropelados. No entanto, em alguns locais, podem ser os mais dizimados, atingindo valores muito preocupantes. Foi isso que demonstraram os estudos realizados no interior do Parque Nacional da Peneda–Gerês, tanto pelo herpetólogo José Carlos Brito, num troço de 12 km da EN308-1, onde este grupo atingiu os 48% do total de vertebrados vitimados, como pelo biólogo Francisco Álvares, que, num troço equivalente da EN308, contabilizou 20% de cadáveres escamosos. Porém, o mais grave foi que em ambos os trabalhos foram registadas 76 víboras atropeladas: 55 víboras-cornudas e 21 víboras de Seoane (um endemismo do norte da península Ibérica que, no nosso país, se encontra quase exclusivamente nos lameiros, prados e matos da Peneda–Gerês). Como se não bastasse, a grande maioria dos cadáveres correspondia a machos potencialmente reprodutores, o que, segundo os investigadores, poderá ter impactos significativos sobre as populações de ambas as espécies.

Os ofídios (cobras e víboras) são geralmente vítimas da sua lentidão e indolência. Além de utilizarem as estradas como zonas de passagem, usam-nas também para regulação térmica: tomando banhos de sol sobre o asfalto ou aproveitando o calor emanado por ele. Além das víboras já referidas, as espécies mais afetadas são habitualmente a cobra-rateira, a cobra-de-escada e as cobras-de-água.

Os sáurios (lagartos, osgas e camaleões) parecem sofrer menos, embora o sardão e a lagartixa-do-mato surjam amiúde entre as vítimas dos pneus. O camaleão, que ocorre sobretudo na mata de Monte Gordo e em pequenos núcleos isolados que se espalham principalmente pelo sotavento algarvio, parece contrariar essa tendência, sofrendo enormes taxas de mortalidade por atropelamento, sobretudo durante o período de reprodução, que, lamentavelmente, coincide com o auge da época balnear. Valores relativos a apenas dois meses (agosto e setembro de 1995) dão conta de 57 mortos em apenas cinco pequenos troços de estradas algarvias.

Os mamíferos ocupam geralmente o terceiro lugar na estatística dos óbitos por atropelamento, mesmo assim com valores expressivos. No trabalho de Marques, chegaram a 28% do total de registos: 15 espécies, incluindo 97 roedores, 25 ouriços-cacheiros, 20 coelhos e dez lebres, a que se juntavam vários carnívoros, como quatro saca-rabos, três raposas e igual número de genetas e de doninhas, bem como um exemplar de toirão, outro de lontra e ainda outro de gato-bravo.

Entre as principais vítimas deste grupo, contam-se o ouriço-cacheiro, os roedores (ratazanas e ratos), os lagomorfos (coelhos e lebres) e a raposa. A elevada mortalidade destes animais nas estradas fica a dever-se sobretudo às suas relações de vizinhança com os humanos, uma vez que surgem frequentemente em zonas florestais e agrícolas suburbanas, podendo mesmo aparecer em jardins citadinos. Além disso, os seus hábitos, principalmente crepusculares e noturnos, fazem-nos sofrer encandeamento pelas luzes dos automóveis, tornando-os presas fáceis dos pneus.

Inês Franco, nas suas prospeções na EN114 (Évora), fez 68 registos pertencentes a dez espécies, algumas das quais ameaçadas, como o morcego-de-ferradura e o toirão. Fernando Ascensão registou 26% de mamíferos liquidados na EN4 (Vendas Novas–Montemor-o-Novo). E, no conjunto dos seus três estudos, contabilizou 446 vítimas, com destaque para o ouriço-cacheiro, com 112 cadáveres, correspondendo estes valores a cerca de 3,3 indivíduos/km/ano (uma das maiores taxas de mortalidade registadas para esta espécie na Europa). Igualmente dramáticos são ainda os dados respeitantes aos carnívoros, com 55 registos, entre os quais 17 raposas, 12 toirões, nove genetas, cinco texugos e quatro fuinhas.

Atropelamentos indiscriminados

Um estudo mais recente, realizado em 7,4 km da EN114 (Évora), entre janeiro e outubro de 2005, permitiu contabilizar 68 carnívoros. Um outro, ao longo de 574 km de várias estradas nacionais alentejanas, e ainda nas autoestradas A2 e A6, entre junho de 2003 e dezembro de 2006, possibilitou a contagem de 801 carnívoros. Convém lembrar que os carnívoros de médio porte são particularmente vulneráveis ao atropelamento, devido aos seus amplos deslocamentos e movimentos de dispersão pelo território. À semelhança do que acontece com as rapinas noturnas, estes apresentam densidades populacionais relativamente baixas, pelo que o seu desaparecimento não seletivo, devido a atropelamento indiscriminado, pode ter graves consequências nas respetivas populações e no equilíbrio dos ecossistemas que habitam.

Em todos os grupos faunísticos, as preocupações dos investigadores direcionam-se sobretudo para as espécies ameaçadas. Para mal dos nossos pecados, cabem muitas neste lote, mas não poderiam ser esquecidos os ícones da fauna ibérica, como o lince, monarca dos matagais mediterrânicos, e o lobo, último grande predador da nossa fauna. Embora se pense que o lince já poderá ter desaparecido de solo português, uma vez que não é observado há alguns anos em estado selvagem, importa referir que, entre 1975 e 1990, foram atropelados três exemplares. O atropelamento tem sido considerado uma importante causa da sua mortalidade: só em 2006, morreram quatro animais nas estradas localizadas na área do Parque Nacional de Doñana (Espanha).

O lobo não tem tido melhor sorte. Os dados oficiais, disponibilizados pelo Sistema de Monitorização de Lobos Mortos, apontam para 21 atropelamentos entre 1995 e 2008, ou seja, esta é claramente a principal causa de morte não natural da espécie no nosso país. Se nos lembrarmos que o efetivo populacional nacional está limitado a cerca de 300 indivíduos, com populações reduzidas e altamente fragmentadas, distribuídas por 65 alcateias, então estes valores tornam-se bastante preocupantes. Os investigadores são unânimes nas conclusões: a fragmentação dos territórios das alcateias devido a novas estradas e vias rápidas tem tido um efeito negativo, que levou a uma inquietante regressão da distribuição da espécie, com consequências muito adversas para a sua conservação, sobretudo na zona centro do país.

Além da morte de animais que se encontram em iminente perigo de extinção ser sempre lamentável, a colisão das viaturas com mamíferos de tamanho médio (raposas, lobos, texugos) e de grande porte (veados, corços e javalis) pode ainda colocar em causa a segurança dos utilizadores das rodovias.

Atenuar os efeitos

Todo o território português está esquartejado por alcatrão, estradas e vias rápidas, onde os motores dos automóveis roncam a toda a hora. A extensão da rede viária prevista no Plano Rodoviário Nacional (PRN2000), revisto em 2008, era de aproximadamente 10 800 km. Destes, estavam já construídos, em finais de 2010, cerca de 8500 km, com a rede de estradas nacionais já concretizada e a de autoestradas também praticamente concluída: as rodovias passaram a fazer parte da paisagem portuguesa, desde os píncaros agrestes do Gerês até à mítica ponta de Sagres.

Com uma expansão tão significativa da rede viária, as estradas continuarão a ser armadilhas mortais. No entanto, podem, e devem, ser implementadas medidas mitigadoras dos seus efeitos letais, uma vez que não é concebível que se acabe com elas, dado serem essenciais ao funcionamento e ao progresso nacional. Ainda assim, não faltam vozes a criticar as opções do plano rodoviário, que tem sido acusado de ser demasiado denso, demasiado ambicioso e não compatível com o estado do país.

Desde o Decreto-Lei n.º 69/2000 que a instalação, a alteração ou a ampliação de todas as autoestradas, dos itinerários principais e complementares e de algumas estradas nacionais e regionais, situadas em áreas sensíveis ou cujos projetos sejam considerados suscetíveis de provocar efeitos significativos, estão sujeitas a avaliação de impacto ambiental. Esta imposição legislativa resulta dos inúmeros efeitos ecológicos causados pelas rodovias, que vão desde a mortalidade por atropelamento até à perda e alteração de habitat, ao efeito de barreira, à poluição, à perturbação e ao efeito de orla, ao efeito de exclusão, à predação e à criação de novos nichos e corredores de dispersão.

Manual de boas práticas

Para ajudar nesse intento, o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade elaborou, em 2008, o Manual de Apoio à Análise de Projetos Relativos à Implementação de Infraestruturas Lineares (designação que inclui as vias de comunicação, como estradas e ferrovias, e os canais de adução e de rega a céu aberto). Este contém informação técnica que pretende apoiar a decisão da compatibilidade de cada projeto com a conservação dos valores naturais.

Os principais fatores que influenciam o número de atropelamentos são a abundância da fauna, a intensidade do tráfego e a velocidade dos veículos. Porém, existem outros igualmente importantes, como a vegetação das bermas, a integração das rodovias na paisagem, a justaposição de habitats, a hora do dia, a época do ano e a atenção do condutor. Assim, é necessário conhecer a dimensão dos impactos ambientais, nomeadamente o problema da mortalidade por atropelamento e as suas reais consequências em cada lugar, de modo a sugerir soluções que possam resolvê-los ou mitigar os seus efeitos.

Enquanto houver estradas e carros a circular nelas, é pouco provável que as mortes por atropelamento acabem. Como é utópico pensar que é possível aplicar soluções minimizadoras na totalidade das rodovias onde se registam ou se prevê que venham a ocorrer atropelamentos de fauna selvagem, impõem-se detetar e agir, principalmente, nos pontos negros: locais onde se registam elevados níveis de mortalidade, nomeadamente corredores de passagem, dispersão e migração, que diferem de espécie para espécie (lugares onde se concentram grande número de animais, como zonas húmidas, colónias de aves ou abrigos de morcegos, são considerados especialmente vulneráveis).

Entre as medidas que podem ser aplicadas para reduzir ou eliminar os impactos negativos das rodovias sobre os animais selvagens, destacam-se as divisórias ou barreiras artificiais (medida que deve ser bem ponderada, pois os inconvenientes do efeito barreira podem superar os benefícios da diminuição dos atropelamentos), que servem para orientar os animais para um local de passagem seguro, como uma linha de água; os túneis, que, dependendo do diâmetro, da iluminação e da localização, poderão desempenhar inclusivamente um papel relevante para a passagem de mamíferos sob a estrada; os viadutos e as passagens desniveladas inferiores e superiores; as passagens para fauna arborícola, como esquilos, martas e fuinhas, que consistem na instalação de cordas suspensas sobre a estrada, permitindo o atravessamento aéreo dos animais em segurança; e as escapatórias, que servem para os animais saírem das vias de rodagem (essencialmente em vias rápidas com vedações), quando nelas entrarem inadvertidamente.

Outras medidas complementares podem passar pela modificação da envolvência da estrada: a limpeza das bermas evita as aglomerações de fauna, sobretudo de passeriformes; pelo contrário, a criação de cortinas arbóreas impede os voos rasantes das rapinas noturnas. A colocação de sinalização específica com o intuito de avisar os condutores do perigo de atropelamento de determinada espécie ou grupo de animais, ou a diminuição da velocidade dos veículos (usando bandas sonoras e lombas) são outras soluções possíveis.

Nos casos extremos, em que não seja possível implementar medidas de mitigação dos efeitos, pode ainda recorrer-se, como último recurso, a medidas de compensação, que visam contrabalançar os efeitos negativos de um projeto rodoviário assegurando contrapartidas para as espécies ou habitats afetados.

Enquanto alguns animais morrem atropelados regularmente ao longo do ano, outros aparecem unicamente em determinadas épocas ou condições meteorológicas. No caso dos mamíferos e das aves, as crias e os juvenis são os mais vulneráveis, tanto pela sua inexpe­riência como pelos movimentos dispersivos que costumam efetuar quando se tornam independentes. Assim, os períodos mais críticos são de maio a agosto para os morcegos, o fim da primavera e o verão para as aves e o outono para os carnívoros. Uma solução para diminuir os atropelamentos poderia ser o reforço da sinalização ou o encerramento temporário de um troço (os chamados “pontos negros”), à noite, em dias de chuva ou durante os pe­ríodos em que se verifiquem migrações, como acontece, por exemplo, com os anfíbios, os morcegos e os camaleões.

Salvar os sapos

Em vários países europeus, como a Alemanha, os Países Baixos, França, o Reino Unido e a Suíça, muitas destas soluções (instalação de sinais de aviso e barreiras e construção de túneis faunísticos) já são implementadas desde as últimas décadas do século passado. Encontraram-se, inclusivamente, soluções complementares engenhosas e baratas para mitigar os atropelamentos de anfíbios em rodovias mais antigas, que passaram pela criação de zonas húmidas artificiais onde estes animais altamente dependentes da água podem completar o seu ciclo de vida sem terem necessidade de atravessar as estradas.

Por cá, também se tem feito alguma coisa. Não só nas infraestruturas rodoviárias, mas também na sensibilização dos cidadãos. A comprová-lo estão notícias vindas a público recentemente, em que se dava conta de que voluntários estavam a ajudar sapos e salamandras do Alvão a atravessarem a estrada. A iniciativa Salvemos os Sapos envolveu dezenas de cidadãos de Vila Real que se disponibilizaram para construir um muro com 40 centímetros de altura, dos dois lados da estrada nacional EN313 (que liga Vila Real a Lamas de Olo). Essa barreira artificial não só evita o atravessamento dos anfíbios, como o sapo-comum, o sapo-corredor e a salamandra-lusitânica (endémica da península Ibérica e classificada como vulnerável), como os conduz até às passagens hidráulicas que já existem por baixo da estrada e que constituem corredores seguros para a circulação destes pequenos animais.

Tratou-se de uma iniciativa muito louvável (atividades similares já se fazem há décadas por toda a Europa), que poderia e deveria ser seguida pelos cidadãos de outros locais. Claro que não resolverá o problema dos corredores da morte que grassam por todo o país, mas ajudará a salvar milhares de bichos. Além disso, os intervenientes podem sempre afirmar que cumpriram a sua parte. Se cada um fizer a sua parte, provavelmente as mortes na estrada, tanto as de animais selvagens como as de pessoas, diminuirão com toda a certeza.

J.N.



Cuidados ao volante

No eterno confronto entre estradas assassinas e animais selvagens, é fácil adivinhar quem tem levado a melhor. Sabendo que entre os principais fatores que influenciam o número de atropelamentos estão a velocidade dos veículos e a atenção dos condutores, seguem-se algumas recomendações para os automobilistas que se preocupam com as vítimas esquecidas do asfalto (e para todos os outros que também gostam do volante e do acelerador).

Em estradas nacionais e regionais que atravessem zonas ambientalmente sensíveis, de grande diversidade faunística ou onde se suspeite do atravessamento de animais selvagens, modere a velocidade e preste atenção ao alcatrão.

Faça o mesmo à noite (infelizmente, é nesta altura que muita gente aproveita as longas retas para carregar mais no acelerador), pois muitas espécies (rapinas noturnas e mamíferos) ficam sem reação quando são encandeadas pelos faróis dos automóveis.

Também à noite, mas sobretudo em dias de chuva, preste atenção aos anfíbios, que costumam atravessar as estradas a três velocidades: devagar, devagarinho e parados! O mesmo acontece com os répteis, sobretudo cobras e víboras, nos dias de sol: chegam ao cúmulo de tirar umas sonecas nos tapetes de asfalto. A primeira reação é direcionar o automóvel para cima deles, mas pense bem: justificar-se-á tanta animosidade? Se não conseguir ignorá-los, então opte por guinar em sentido contrário: gasta a mesma energia e sempre tem algo diferente para contar aos seus filhos, que não per­doam a crueldade animal (muito menos quando é cometida pelos pais).

Quando vir um animal a atravessar a estrada, redobre a atenção, pois pode vir outro a seguir. Os bichos são como as bolas que saltam para a rua: geralmente, vem qualquer coisa atrás.

Ao respeitar as regras de trânsito e a sinalização rodoviária, obterá pelo menos quatro benefícios: a segurança da sua pessoa e dos outros indivíduos com quem se cruza, e a preservação da vida selvagem e da sua carteira. É que os bichos, tal como os restantes utilizadores da via pública (e já agora, os polícias), não gostam de aceleras. Nos casos em que os condutores mal conseguem ver a paisagem, dificilmente se aperceberão dos animais que atropelam, exceto se as vítimas forem mais avantajadas ou o carro tiver de ir parar às mãos de um mecânico. O atropelamento de alguns animais pode ter consequências catastróficas, e não só para os bichos…

SUPER 178 - Fevereiro 2013»

Fonte: Super Interessante

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