Por Carlos Coutinho
REPARE-SE na viril alegria destes valentes soldados portugueses que, fazendo confluir as suas miras para o mesmo alvo, posam para uma objectiva que os poderá eternizar (*). Provavelmente nem sabiam que também existe o Panteão da Infâmia, onde o nosso Presidente e as mais altas figuras do poder civil e militar podem ir, discretamente, prestar homenagens podres a um cadáver fardado e hipermedalhado.
O que essa fria e inumana objectiva capta, logo em primeiro plano, é o corpo em chamas de um guerrilheiro nacionalista que os nossos garbosos militares capturaram e, triunfalmente, decidiram queimar vivo.
A verdade é que, apesar de tudo, não foram tão insanos como aquele “comando” e ex-“flecha” guineense de etnia papel que atingia o clímax da sua moderna e patriótica “portugalidade”, sempre que podia mostrar o seu talento de capador definitivo, cortando os testículos a um irmão de cor e da futura pátria. Metia-lhos a seguir na boca, para ficar a vê-lo morrer devagarinho.
Deve ter pensado que o fogo mata muito mais depressa, diminuindo inaceitavelmente o tempo que o supliciado tem para sofrer. Talvez por isso, não desperdiçou nunca a oportunidade de saborear os gemidos da presa e aplaudir a lentidão do sangue que ia saindo da raiz de um pénis já sem função respeitável.
Soubemos do recente funeral desse monstro por notícias envergonhadas. E essa vergonha salpicou-nos a todos a consciência, de forma inapagável,
A mim, por inesperada sorte, confortou-me a surpreendente coragem do ministro da Defesa que, apesar de pastorear militares, não se intimidou e respondeu aos deputados da “portugalidade”, naquela vergonhosa audição parlamentar que lhe impuseram, não ter dificuldade em retomar a sua condição plena de cidadão. Respeitando, ao mesmo tempo, os princípios do Estado de Direito democrático.
Provavelmente, o Dr. João Gomes Cravinho tinha conhecimento, tal como os outros governantes da comitiva fúnebre, pelo menos de um rol abreviado de massacres em que está Pidjiguiti (1959), Viqueque, (1959), Mueda (1960), Baixa do Casanje (1961), Wiriamu e mais quatro aldeias (1972), Batepá (1953), musseques de Luanda (1961) e contramassacres do Norte de Angola. Em menor escala, mas em muito maior número, foram as cruéis acções violentas contra populações indefesas perpetradas por militares e milícias coloniais nos nossos vietnames. De algumas fui eu testemunha.
(*) Esta imagem é apenas parte de uma larga fotografia reproduzida pelo “Público”, 14.3.2021) e que é uma das quatro anexadas a um ofício da PIDE.
Angola, 1964 – Primeiro foram os 500 anos da ocupação, depois foram as inúmeras violências de todo o tipo, a maior das quais foi o analfabetismo e a paragem no tempo impostos aos povos indígenas, depois foi o tráfico esclavagista, depois foi o massacre da Baixa do Cassanje, depois foi a resposta sangrenta da UPA a esse morticínio, depois houve a contra-resposta ainda mais sangrenta dos colonos armados e, por fim, a Guerra Colonial com momentos exemplares como os desta imagem. Salazar, naquela sua voz de mezzo-soprano, impôs: “Para Angola, rapidamente e em força.” O resultado foi proliferarem nas cidades e nas matas, Marcelos e Marcelinos. Todos “orgulhosamente sós”, felizmente.
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