segunda-feira, 6 de julho de 2015

RAP & JCLEESE

«Ricardo Araújo Pereira entrevista John Cleese
Ninguém morreu de uma piada assassina, nem o britânico confessou coisas pythonescas como, por exemplo, ser um "lenhador cross-dresser", nesta conversa (inevitável?) entre os dois humoristas, exclusiva para a VISÃO. Mas que este foi o princípio de uma bela amizade, isso foi
10:35 Sexta feira, 3 de Julho de 2015

Chega esta semana às livrarias Ora, Como Eu Dizia..., a tradução portuguesa da autobiografia do humorista inglês John Cleese, um dos lendários Monty Python e co-autor da série Fawlty Towers. É a história dos primeiros anos da vida de um homem que viria a ser ministro das locomoções patetas, proprietário de papagaios mortos, cliente de lojas de queijo que não vendem queijo e industrial hoteleiro insociável. E a primeira pessoa a dizer a palavra "merda" na televisão inglesa. (E "foda-se" num funeral.)
É costume, nas entrevistas, registar entre parêntesis alguma ocorrência que não fica explícita nas palavras. Se o entrevistado ri, aparece a palavra "risos". Se demora muito a responder, lê-se: "silêncio". No fim desta entrevista ocorreu um incidente de tal forma bizarro que tornou necessário descrever o comportamento do entrevistador, e não do entrevistado. Optei pela expressão "perplexidade exuberante". A entrevista foi feita por videoconferência.

RICARDO ARAÚJO PEREIRA: É um prazer enorme conhecê-lo, sr. Cleese.
JOHN CLEESE: Como estás? Fiquei satisfeito por saber que tinhas escrito o prefácio da minha biografia. A maior parte dos meus livros não tem um prefácio...

RAP: Gostava de começar precisamente por aí. Creio que, quando as pessoas lêem a biografia de um humorista, esperam encontrar uma existência triste. Ou, pelo menos, um episódio especialmente doloroso que tenha sido decisivo para que se tornassem humoristas. Uma das coisas que escrevi no prefácio foi que, no seu caso, o seu olhar humorístico sobre as coisas pode ter tido uma causa bastante prosaica: o facto de ter mudado de casa 11 vezes durante a infância tê-lo-á impedido de fazer amizades, criar laços, dando-lhe ao mesmo tempo a vantagem de poder assistir às relações sociais a partir do lado de fora, ou seja, de um ponto de vista invulgar. Estou completamente enganado?
JC: Não. Creio que muito disso está certo. Mas repara: eu não estava a viajar de país para país. Ia mudando de sítio dentro de uma zona muito específica do Reino Unido: o Sudoeste. Mas acredito, de facto - e isto é uma ideia do Robin Skinner [psicoterapeuta, escreveu com Cleese o livro Famílias e como (sobre)viver com elas, edição Afrontamento] -, que, na infância, temos de conciliar muitos pontos de vista diferentes. Seja porque estamos sempre a mudar de sítio, ou porque os nossos pais têm maneiras muito distintas de encarar a vida e temos de encontrar um modo de as compatibilizar. Tudo o que envolva comparar duas coisas, avaliar as suas diferenças e semelhanças, e formular juízos acerca do que é melhor ou pior. Isso parece enformar a mente para a criatividade. Se quisermos ser não-criativos - e possivelmente um pouco insípidos mas emocionalmente seguros ?- então devemos ir para sítios como o Idaho, ou o Dakota do Sul, e crescer lá, onde toda a gente tem a mesma aparência, o mesmo comportamento, as mesmas convicções. Assim, seremos provavelmente muito estáveis, mas não seremos criativos, de certeza.

RAP: Nas suas conferências sobre criatividade fala de dois tipos de, digamos, disposição mental: o "modo aberto" e o "modo fechado". O "modo aberto" é aquele em que nos encontramos quando estamos despreocupadamente a ler, ou a ver qualquer coisa sem outra motivação que não seja a simples curiosidade ou o prazer. É quando estamos nesse "modo" que nos ocorrem as ideias. O "modo fechado" é o da concentração, essencial para, depois de ter as ideias, as concretizar. A generalidade das pessoas, por causa dos afazeres diários e do peso da responsabilidade, tem dificuldade em colocar-se no "modo aberto". Ser imaturo ajuda, não acha?
JC: Sim. (risos) Concordo contigo. Nós os dois devíamos encontrar-nos. As nossas mentes encaixam-se assim [entrelaça os dedos]. Creio que não preciso de te explicar, porque acho que sabes. A resposta é sim. Faz-me a pergunta de novo, porque há duas ou três questões diferentes aí.

RAP: Estava à procura de estratégias para nos colocarmos nessa disposição mental mais leve e, por isso, mais ágil e criativa. 
JC: É isso. Tem tudo a ver com a noção de jogo. Quando brincamos somos criativos. Essa área tem de ser separada da vida real. Não podemos brincar na vida real, porque há sempre coisas para fazer. Há telefonemas, obrigações. Portanto, a arte de nos colocarmos no "modo aberto" depende de criar uma área onde possamos brincar. Temos de fazer duas coisas: criar fronteiras de espaço, para não sermos interrompidos, e fronteiras de tempo, para sabermos que começa agora e acaba dentro de um determinado número de horas. Durante esse período, livramo-nos da vida quotidiana. Percebes onde quero chegar? Daí teres falado em imaturidade. O que há de maravilhoso em sermos crianças é o facto de podermos brincar durante tanto tempo, porque os nossos pais estão a tomar conta de tudo o que tem a ver com o resto da vida. Não temos de pensar na nossa refeição. Eles estão a tratar disso. Por isso, como adultos, temos de criar essa área na qual podemos brincar e fugir das preocupações do mundo.

RAP: Há um episódio, neste livro, em que a sua mãe está, mais uma vez, a queixar-se da vida e a desejar que Deus a leve. E o senhor, de uma forma muito cândida, oferece-se para contratar um homem que faça o favor de a matar. Primeiro ela fica em silêncio, mas depois dá uma gargalhada estrondosa. O senhor conclui: "Acho que nunca a amei tanto como nesse momento." Fazer rir uma pessoa pode ser um acto de amor. Aqui, a vossa aproximação também tem a ver com o inverso: com o facto de ela ter sido capaz de rir do que lhe disse.
JC: Acho que a nossa cultura põe demasiada ênfase no nosso lado lógico, verbal, e descura o lado inconsciente. O inconsciente tem má reputação porque Sigmund Freud fez-nos pensar nele como uma espécie de caixote do lixo cheio de coisas más das quais nos queremos livrar. Mas o inconsciente é muito mais interessante do que isso. Consegue fazer inúmeras coisas por nós. O exemplo mais simples é: ata os nossos atacadores, de manhã. É algo que fazemos sem pensar. O inconsciente encarrega-se disso. Portanto, além daquilo que, na nossa mente, é consciente, há muito a passar-se que é inconsciente. Quando nos sentimos emocionalmente próximos de alguém, parece-me que isso pode significar que o inconsciente fez uma ligação, possivelmente a um nível muito mais profundo do que, conscientemente, percebemos. Se há um ponto-chave na relação que tenho com a minha quarta mulher é este: nós rimos juntos. Até sobre as coisas mais pequenas. Ambos nos queixamos de que o outro faz demasiado barulho à noite. Ela fala sozinha e eu ressono. E então entramos numa competição de dizer "chiu" um ao outro, e acabamos a chorar a rir. É muito terno e completamente imaturo, mas é um tipo de aproximação que me faz sentir que não poderia fazer aquilo com mais ninguém.

RAP: Freud escreveu um livro acerca, precisamente, da relação do humor com o inconsciente. E, mais tarde, escreveu ainda um opúsculo em que fala do humor como modo de lidar com a dor e o medo, como se o superego dissesse ao ego: "Repara, aqui está o mundo, que parece tão assustador. Na verdade, é apenas uma brincadeira de crianças acerca da qual vale a pena fazer uma piada."
JC: Exacto. É uma questão de sentido da proporção. O humor reduz as coisas à sua verdadeira dimensão. Às vezes ficamos terrivelmente aborrecidos com coisas pequenas. Por exemplo, quando alguém nos faz um gesto obsceno no trânsito. De uma pessoa que perde a cabeça nesse tipo de situação dizemos que "perdeu o sentido de humor". Quando o readquire, recupera também o sentido da proporção, percebe quão pouco importante aquilo é.

RAP: Em algumas recensões à sua biografia pareceu-me haver alguma desilusão por a sua vida não corresponder a um certo estereótipo do humorista cujo riso esconde uma personalidade sombria.
JC: Ah, sim, Ricardo, tu perguntaste-me isso no início e eu não cheguei a responder. De facto, muitos humoristas que eu conheço são bastante depressivos. Mas, ao mesmo tempo, creio que isso é verdade para muitas profissões. Quem tem as taxas de suicídio mais elevadas? Acho que são os médicos e dentistas. Portanto, há realmente essa ideia de que os humoristas são pessoas deprimidas, mas eu pergunto: são mais deprimidas que as outras? Há gente triste e perturbada em todas as profissões.

RAP: Talvez a ideia do humorista deprimido se deva apenas ao contraste. Toda a gente tem um lado triste, mas o lado triste de um dentista, por exemplo, não contrasta com o que ele faz profissionalmente, e por isso é menos evidente.
JC: Exactamente, é o contraste que faz com que isso sobressaia.

RAP: Certos críticos também se surpreenderam com o facto de alguns dos seus maiores ressentimentos terem um motivo razoavelmente banal. Como há a ideia de que, quanto maior o humorista, maior a dor, esperavam que a sua infância fosse um romance do Charles Dickens. Concorda com a definição de comédia do Mel Brooks: "Tragédia é eu partir uma unha; comédia é tu caíres no buraco do esgoto e morreres"?
JC: (risos) Isso é muito bom. Um grande autor de comédia contou-me, uma vez, esta história: o médico examina um paciente e diz-lhe: "Bom, há boas notícias e más notícias. As más notícias são que você tem um cancro no pâncreas e restam-lhe apenas quatro meses de vida." Diz o paciente: "Quais são as boas?" E o médico: "Está a ver aquela enfermeira? Comi-a ontem." (risos)

RAP: Uma vez o Terry Jones disse que o facto de a palavra "pythonesque" ter sido incluída no dicionário era a prova de que os Monty Python tinham falhado clamorosamente, na medida em que tinham pretendido fazer coisas muito diferentes umas das outras e, afinal, tinham criado uma obra tão uniforme que era possível definir numa palavra.
JC: Eu acho que isso é um completo disparate. (risos) Eu sempre achei que o Terry dizia disparates com muita frequência, e aí está a prova. Isso é mesmo uma palermice. Mas não te podes esquecer que ele é de Oxford... [Cleese estudou em Cambridge] (risos) Eu quero conhecer-te, Ricardo. ?O que significa que tenho de ir a Portugal, suponho. Tenta arranjar uma razão para eu ir aí, porque eu gostaria de te conhecer.

RAP: (perplexidade exuberante)
JC: Estou a falar a sério. O único problema é que não vivemos na mesma cidade. Fica com o meu endereço de e-mail. Contacta-me e depois descobriremos de que maneira havemos de encontrar-nos. Vai ser divertido.»


Fonte: Visão em http://goo.gl/po47kO

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