“O eterno retorno do fascismo”
7 de Fevereiro, 2021
“O Partido Nacional Fascista (PNF) nasceu em Itália, em 1921, num cenário de forte crise económico-social que flagelou a Europa logo após a I Guerra Mundial (1914-18). Tencionou derrubar um demoliberalismo despojado de preocupações sociais e exterminar as correntes socialistas e comunistas que aspiravam propagar a revolução marxista ao Ocidente. Para cumprirem o seu desígnio, Mussolini e os seus correligionários engendraram uma nova ideologia escorada em princípios fundamentais: culto a um chefe carismático, corporativismo estatal, imperialismo, nacionalismo exacerbado, retorno ao «destino glorioso de Roma», anticomunismo, antiparlamentarismo, liturgia militarista, suspensão das liberdades individuais, autarcia e antiliberalismo (mas não anticapitalismo). Com esta cartilha e uma eficaz retórica demagógica, os fascistas seduziram as classes sociais intermédias, os desempregados, os desmobilizados da guerra, mas também as oligarquias dominantes. E mobilizaram socialistas arrependidos, anarcossindicalistas, republicanos conservadores e presidencialistas, católicos corporativos, monárquicos integralistas e intelectuais modernistas.
O corpo paramilitar dos «Camisas Negras» (símbolo do luto de uma Itália decadente, naufragada no desemprego e na miséria) foi usado pelo PNF como arma para a conquista do poder. Arregimentou as turbas, lançou o terror nas oposições democráticas, socialistas e comunistas, assassinou adversários políticos e coagiu o rei, Vítor Manuel III, a ofertar o cargo de primeiro-ministro a Mussolini, em 1922. Este e os seus sequazes banalizaram o crime, a violência, a fraude e utilizaram a propaganda, para, rapidamente, fortalecerem o seu poder e entronizarem «il Duce» (condutor supremo) como senhor absoluto da Itália.
O fascismo apadrinhado pelo «duce» Mussolini inspirou-se em autores tão variados como Hegel, Nietzsche, Geovanni Gentile, Bergson, Baden Powell, Wagner, Maurras, Sorel, Barrès, Gobineau, Wilhelm Marr, Leão XIII, Pio X, Ratzel, Comte, Gustave Le Bon, Maquiavel, Francesco Ercole, D`Annunzio ou Marinetti. Esta multiplicidade de autores e ideias tornou o fascismo uma ideologia confusa e paradoxal, embrulhada em doses abundantes de retórica agressiva, encenação histriónica e pragmatismo político. O «duce» era ateu, mas assinou uma Concordata com a Igreja Católica que lhe permitiu beneficiar da bênção e colaboração do papa Pio XI e da maioria dos bispos, que chegaram a venerá-lo como líder providencial. Anunciou uma nova ordem revolucionária, mas foi financiado pelos proprietários rurais mais conservadores e contrarrevolucionários. Era republicano, mas encarnou o papel de déspota e condottiere de uma monarquia e, na fase decrescente do regime fascista, quando Mussolini se tornou um fantoche do nazismo, numa «república social» centrada em Salò, Lombardia (1943). Idolatrou a estética Futurista e os seus mentores Filippo Marinetti e Gabriele D`Annunzio, que teriam sido tachados como «arte e artistas degenerados» pelo nazismo. Incluiu correligionários judeus no seu partido, e teve até uma amante judia, mas acabou por abraçar o preconceito ignóbil do antissemitismo.
O fascismo fragmentou-se em matizes diferenciadas, em função da latitude e da cultura onde surgiram (Alemanha, Áustria, Portugal, Espanha, Hungria, Roménia…). Tantas foram as suas especificidades nacionais que alguns autores sustentaram que só o regime italiano comandado por Mussolini pode ser classificado como Fascismo. Outros autores reconheceram a existência de um fascismo genérico, em que as variantes nacionais encontram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini. Deste ponto de vista, consideraram, por exemplo, que o Estado Novo de Salazar foi um «fascismo sem movimento fascista» ou um «fascismo à portuguesa» ou ainda um «fascismo de cátedra» (cito apenas Manuel de Lucena, Eduardo Lourenço, Luís Reis Torgal, Fernando Rosas ou Miguel de Unamuno).
Convocando alguns dos argumentos atrás citados, Umberto Eco considerou que o fascismo histórico italiano «não foi uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideias políticas e filosóficas», que resultou numa «confusão estruturada». Daí progrediu para a proposta de uma definição não canónica, elástica, multiforme, contemporânea e imperecível de fascismo. Chamou-lhe «fascismo eterno» (ou «ur-fascismo») — uma corrente autoritária que não se esgotou no fenómeno histórico datado dos anos 20 a 40 do século XX e que se camuflou com outras roupagens: culto da tradição, recusa da modernidade, irracionalismo, intolerância, medo da diferença, apelo ao sentimento de frustração, nacionalismo retórico, necessidade da existência de um inimigo, culto da violência, elitismo, fabricação de um herói redentor, repressão sexual, populismo, hostilidade à cultura e à ciência (Umberto Eco, Il fascismo eterno, 1995).
Ora, muitos dos chefes populistas atuais e dos seus movimentos, partidos ou regimes obedecem a vários destes preceitos. Mais: em muitos casos, estes movimentos optaram por mistificar a realidade histórica, quando afiançam que a «extrema-esquerda comunista» regressou, hoje, com o mesmo vigor que revelou nos anos 20 e 30 do século passado, para monopolizar a política, a cultura e a educação, estatizar e coletivizar a economia e até decretar uma nova «ditadura do proletariado». Quem assim opera e agrega várias das características elencadas por Umberto Eco é também o tronco populista radical português chefiado por André Ventura. Como são mestres na arte da mentira e da manipulação, estes chefes negam qualquer proximidade com o fascismo (que, aliás, não é consentido pelo artigo 46.º da nossa Constituição, nem por outras Constituições de países democráticos). Contudo, transportam no seu corpo o vírus dessa «peste», que, em épocas de maior tragédia humana, instilam nas massas de indignados, desesperados, deserdados, ignaros, alienados e arrivistas. As tais massas, ressentidas, resignadas ou revoltadas, que vivem, hoje, submersas no mundo alternativo das redes sociais, absortas no consumismo desenfreado, embrenhadas no espetáculo dos media e da política e são manipuladas pela mercantilização e precarização do jornalismo. Dito isto, impõe-se colocar a todos nós uma premente questão: quem está disposto a superar a sua circunstância, contraditar o mundo onde vegetam essas massas e combater por uma democracia mais transparente, culta, participativa e inclusiva?”
Luís Filipe Torgal*
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