segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

MARCELINO DA MATA

 Marcelino da Mata merece respeito?

Marcelino da Mata contou, no ano 2000, num documentário realizado para a RTP, que um grupo comandado por ele, durante a Guerra Colonial, na Guiné-Bissau, conseguiu apanhar um homem do PAIGC envolvido na captura de dois soldados portugueses da Companhia 497. Um dos capturados terá sido empalado. Outro foi castrado, obrigado a meter na boca o próprio órgão sexual e, depois, assassinado.

O grupo de Marcelino da Mata, por vingança, fez o mesmo ao soldado do PAIGC: castrou-o, obrigou-o a meter na boca o seu próprio órgão sexual e, depois, matou-o.

O homem que liderou esta "proeza", confessada publicamente; o homem que não conseguiu distinguir o limite que separa um ato de guerra legítimo, mesmo se brutal e letal, com um crime de guerra; o homem que achava que a barbaridade do inimigo podia justificar a sua própria barbaridade; o homem cujo sentido de justiça se resumia a trocar um olho por outro olho e um dente por outro dente acabou de ser homenageado na Assembleia da República com um voto de pesar pelo seu falecimento, que contou com a concordância de quase todos os deputados do PS e da totalidade dos eleitos pelo PSD, CDS-PP, Chega e Iniciativa Liberal.

Marcelino da Mata merece ser respeitado. Foi um português valente, corajoso, destemido, que serviu com orgulho numa guerra ao serviço de Portugal, da maneira que achava ser a melhor e a mais eficaz.

Mas o Marcelino da Mata que foi alferes de uma guerra que começou há 60 anos era um homem que lutou em nome de um antigo estado fascista e colonialista, um homem que incorporou parte ou a totalidade dos valores desse estado e em seu nome cometeu, comprovadamente, vários crimes de guerra.

O estado de raiz fascista, o estado colonialista que era o estado do tempo do Marcelino da Mata teve presos políticos, montou tribunais especiais para eles, organizou campos de concentração de prisioneiros e sistematizou, institucionalizou e rotinou processos de tortura brutal em interrogatórios policiais e políticos.

Nas colónias, este Estado não reconhecia direitos de cidadania à maioria da população de pele negra e sujeitava-a a uma violência quotidiana, à discriminação jurídica, à exclusão política. A servidão, ao nível da escravatura, era a realidade diária de grandes fatias dessas populações, sobretudo em zonas rurais.

É este estado que Marcelino da Mata conheceu. E foi este estado que Marcelino da Mata defendeu e por quem lutou, com brilhantismo. Para o estado democrático, porém, Marcelino da Mata nada fez de relevante.

Qualquer estado democrático tem o dever de respeitar um homem como Marcelino da Mata, por ter sido um militar português que esteve em teatro de guerra em nome de Portugal. Tal como Marcelino da Mata, milhares de outros portugueses deviam merecer, por esse facto, todo o respeito do estado português. Mas não são todos heróis.

Um estado democrático não pode aceitar fazer de um criminoso de guerra um herói. Porquê? Porque fazer de um criminoso de guerra um herói é dizer que os valores humanitários que o estado democrático defende são, afinal, um exercício de hipocrisia e podem ser esquecidos. Ora, um crime de guerra numa sociedade humanitária não pode ser esquecido. Pode, em nome da concórdia e da pacificação nacional, ser perdoado. E é tudo.

A Assembleia da República cometeu ainda outro erro: ao homenagear um homem que, voluntária ou involuntariamente, se tornou símbolo do modelo de sociedade do estado fascista e colonialista esteve indiretamente a consentir que os valores da repressão, da tortura, do racismo, da colonização e de toda a ideologia desumana do Estado Novo acabem por ser, por via indireta, objeto de homenagem pelo estado democrático.

Isto é grave e ultrapassa muito as discussões patetas sobre "normalização do fascismo" ou de "reescrita do passado" a propósito da destruição de brasões ajardinados da Praça do Império, ou da estúpida hipótese de destruição do Padrão dos Descobrimentos.

A democracia não deve apagar a memória do passado fascista, mas, se quer sobreviver, não pode, ao mesmo tempo, começar a incorporar os valores do fascismo.

Quero aproveitar para me despedir de quem me tem acompanhado: a direção da TSF está a preparar uma série de novidades e de melhorias e, por isso, o espaço que aqui ocupei termina agora. Agradeço a todos os que me foram lendo, fica já anunciado que continuarei aqui na TSF com outro tipo de intervenção e colaboração e quero agradecer também ao Nuno Domingues e à equipa da manhã que, durante ano e meio, me deram guarida. Até já.

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