sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

POPULAÇÃO E PIDE

 «Publicou o Público, a 14/02/2012, o artigo “Os Portugueses foram vítimas ou cúmplices da PIDE?” da autoria de Duncan Simpson, o que me suscita alguns comentários.

Desde logo, o título é desadequado pois houve efectivamente vítimas e a pergunta retórica desmerece-o.

Ao querer chamar bombasticamente a atenção do leitor através de um absurdo lógico (como se alguma vez um povo pudesse ser todo ele cúmplice de uma polícia política), o autor poderia apenas estar a arranjar um título apelativo.

No entanto, a dicotomia “vítimas” e “cúmplices” é reforçada quando se opõe a minoria de opositores ao vasto “resto da população”, o que resulta em sugerir que uma grande maioria de portugueses aderiu e até manipulava a PIDE. As “vítimas” seriam os poucos que se teriam oposto ao Estado Novo; os “cúmplices” a grande maioria da população: esta é a visão de Duncan Simpson. Trata-se, no mínimo, de uma visão cor-de-rosa do Estado Novo.

Depois, o autor abre caminho, depreciando outros historiadores. Começa por citar Irene Pimentel e Fernando Rosas como prisioneiros daquilo que chama “memória ‘antifascista’ da PIDE”, repetindo as aspas de antifascista sempre que se lhe refere. Porquê as aspas? Simpson deveria explicá-lo. Além de que, em qualquer das obras citadas dos dois autores anteriores, estes tratam as formas de ligação entre a PIDE e sectores da população, chegando até Fernando Rosas a entender estas ligações como uma das formas do “saber durar” salazarista, sendo um dos segredos da sua longevidade. O tema de Simpson está, pois, presente em outros autores, pelo que não havia necessidade de entrar assim em campo.

E o artigo continua, utilizando tópicos muito caros à historiografia e às Ciências Sociais como a tão falada “história dos de baixo”, procurando Simpson inserir-se, assim, numa corrente de modernidade, legitimando o seu lugar - que começara por desbravar à força.

A sua modernidade também estaria nas suas novas referências bibliográficas num quadro em que “a historiografia portuguesa contrastaria fortemente com os desenvolvimentos da bibliografia internacional” … só que, por exemplo, Gellately também aparece em textos de Irene Pimentel e já em 2007.

A certa altura, Duncan passa para uma forma de escrita menos chamativa, entrando naquilo que será um registo mais científico. Afirma pretender “analisar as interacções entre a polícia política e os cidadãos comuns, aqui entendidos como a esmagadora maioria dos portugueses que nunca se envolveu em actividades políticas. Trata-se de ir para além da narrativa tradicional da repressão e da violência para melhor entender o papel da PIDE na organização da sociedade durante o Estado Novo”. Com este tom mais calmo, Simpson volta a piscar o olho a quem se interessa pela história dos de baixo: volta a falar dos “cidadãos comuns”. Impõe-se perguntar: não cabem no conceito de vítimas? não foram objecto de repressão pela polícia política que era a PIDE?

Um outro elemento de modernidade de Simpson seria a perspectiva comparativa. Antes do mais, esta já preocupou António Costa Pinto, Fernando Rosas, Irene Pimentel. É nesta óptica comparativa que Simpson enuncia breves analogias das relações entre o povo-polícia política em Portugal com estas relações na RDA. Pretende-se talvez ganhar mais eco no público com esta rapidíssima justaposição já que a adesão emocional à crítica das ditaduras num e no outro país é tão generalizada!

Isto não é maneira de fazer História!

A questão das relações entre a PIDE e a população não é nova, não foi agora descoberta… basta consultar os jornais do pós 25 de Abril para ver tantos e tantos desmentidos de pessoas anónimas que afirmavam não ser da PIDE, o que por si só mostra a penetração da PIDE na sociedade mas também o medo e a desconfiança da própria sombra, que o Estado Novo imprimiu e difundiu generalizadamente!

Merece investigação, sim, a análise das relações da PIDE com a população na sua diversidade e multiplicidade, relações estas tomadas como objecto de estudo principal mas sempre com uma contextualização que não remeta para a categoria de “narrativa tradicional” o carácter violento e repressor da polícia política».

Luísa Tiago de Oliveira

Historiadora

ISCTE

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