«Afonsinho
Afonso Celso Reis Garcia, o Afonsinho, é conhecido por ser o primeiro jogador a conquistar o passe livre no futebol brasileiro. A aura de jogador rebelde, além de confirmada na barba e nos cabelos compridos quando ninguém ainda os exibia nos gramados, transparecia na consciência política desenvolvida em plenos anos de chumbo.
Evidentemente, esses são aspectos singulares. Mas há algo que deveria ser considerado com mais frequência sobre ele: é que o seu engajamento talvez não tivesse a mesma ressonância histórica não fosse a sua intimidade com a bola. Afonsinho foi um craque monumental. Isso, por si só, já lhe atraía os holofotes. E o fato de ter sido pouco convocado à seleção nada teve a ver com critérios técnicos.
Ainda muito novo, Afonsinho era uma promessa nas divisões de base do XV de Jaú. Apostando no próprio potencial, fez as malas para o Rio de Janeiro em 1965, movido pela mesma vontade de independência que foi a constante da sua carreira. O apelo da mística do Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos falou mais alto e ele não hesitou em escolher o seu novo destino na metrópole. Após breve passagem pelos juniores, Afonsinho foi alçado à condição de reserva, e logo, à de titular na meia-direita na equipe principal de General Severiano. Foram alguns anos assim. Ciente da curta vida útil do atleta profissional, e também pelo desejo de se emancipar, dividia o período de treinos e concentração com a faculdade de medicina. E não demorou a se converter, para a diretoria, numa incômoda exceção à regra.
Afonsinho era articulado e exercia uma liderança espontânea entre os companheiros. Defendia direitos elementares que só o clube teimava em não considerar como tais. O pagamento em dia dos prêmios pelas vitórias do time era um deles. O diretor de futebol Zeferino Xisto Toniato e o técnico Mario Jorge Lobo Zagallo passaram a considerá-lo muito destoante do restante do grupo. A começar pela sua aparência. Implicaram com a sua barba rala, o cabelo um pouco maior que o permitido pelo padrão vigente: – “Quer parecer um tocador de guitarra, um cantor de iê, iê, iê?” – perguntaram, tentando dar um tom brando à censura. Em protesto, deixou-os crescer ainda mais. Afonsinho reivindicava melhores condições de trabalho para si e os outros jogadores. Dentre todas as reivindicações, a do passe livre tornou-se aquela que historicamente mais se associaria ao seu nome. Verdadeiro grilhão que aprisiona o jogador ao clube, o passe era – e ainda é, para quem não o detenha – a principal garantia de controle sobre os atletas por parte dos cartolas. Após longa batalha judicial contra os dirigentes alvinegros pela disputa do seu passe, a Justiça, de forma inédita (e inesperada), deu-lhe ganho de causa. O sinal de alerta foi ligado nas outras agremiações. O camisa 8 tornou-se um exemplo perigosamente influente dentro do sistema do futebol brasileiro.
General Severiano foi a primeira estação da sua trajetória cigana pelo profissionalismo. Uma trajetória marcada, principalmente, pelos embates com a cartolagem e os códigos disciplinares de todos os clubes pelos quais jogou. Além dos outros três grandes do Rio, a lista inclui Santos, Olaria, Madureira e América-MG. Não é de surpreender que fosse fichado no DOPS, ou que tivesse seus passos vigiados de perto tanto nas concentrações – mesmo quando em excursões internacionais – como na sua rotina universitária. Os infiltrados devem ter tido muito trabalho, já que Afonsinho frequentava círculos que não só o do futebol. A amizade com músicos rendeu “Meio de campo”, de Gilberto Gil, em louvor a sua luta. A canção aparece como um dos elementos narrativos de Passe livre, formidável documentário em longa-metragem de 1974, de Oswaldo Caldeira, que flagra o seu nomadismo clubístico ao sabor das desavenças que ia acumulando com dirigentes e treinadores. Entre as rescisões de contrato, excursionava em esquema mambembe com o Trem da Alegria, time que reunia artistas, jornalistas e jogadores temporariamente desempregados como ele. Era a solução para se manter em forma e melhor viver a liberdade conquistada.
Contestador em nome da classe, e não por ressentimento pessoal, Afonsinho se relaciona com o mundo à maneira do seu antigo fino trato com a bola. Outros reivindicaram direitos antes dele, mas nenhum o fez com tamanha consciência. Ou mesmo conseguiu conquistá-los como ele conquistou. Isolado, lutou pioneiramente por todos. Foi, com o perdão do trocadilho, um solidário solitário. E também um revolucionário, fazendo jus ao título como ninguém. Outros dissidentes do futebol trilharam o caminho que ele pavimentou. Quanto à lei do passe, até os atletas mais alienados vieram a ser beneficiários do seu gesto precursor. A geração atual de jogadores profissionais não sabe, mas tem uma dívida descomunal para com Afonsinho.»
Fonte: Palavras Polivalentes
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