terça-feira, 11 de agosto de 2015

ACÇÃO REVOLUCIONÁRIA ARMADA

«ARA "abandona" a clandestinidade

JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

Os operacionais da Acção Revolucionária Armada (ARA): Manuel dos Santos Guerreiro, José Brandão, Policarpo Guerreiro, Carlos Coutinho, Fernanda Castro, viuva  de Ângelo de Sousa, Raimundo Narciso, Amado Silva, Margarida Correia Eça, viúva de Vítor Almeida d’ Eça, António Pedro Ferreira, Ramiro Morgado e António Eusébio
 HÁ TRINTA anos, uma poderosa carga explosiva destruiu parcialmente o navio «Cunene», utilizado para transporte de material militar para a guerra em África. A explosão, ocorrida na madrugada de 26 de Outubro de 1970, foi o cartão de visita de uma nova organização. Tratava-se da ARA, sigla da Acção Revolucionária Armada, o braço militar do PCP. Depois do «Cunene», seguiram-se mais 13 acções contra alvos militares ou com grande repercussão pública.
Trinta anos volvidos sobre aquela espectacular sabotagem, os homens e mulheres que fizeram parte da ARA juntaram-se para celebrar a efeméride. A iniciativa partiu de Raimundo Narciso, o principal operacional e um dos seus responsáveis políticos. Militante do PCP desde 1959, viveu dez anos na clandestinidade, de que só saiu depois do 25 de Abril. Funcionário do PCP e membro do Comité Central, foi expulso do partido em 1989, após a queda do muro de Berlim.

O encontro teve lugar no passado domingo, em Vilar do Cadaval (Torres Vedras). Foi a primeira vez que os quadros da ARA - os operacionais e a rede da retaguarda - se reuniram. Aliás, como afirmou Raimundo Narciso, numa pequena intervenção, à excepção do próprio, nenhum dos convivas «conhecia todos os outros activistas que deram vida à ARA». Aliás, nem sequer conheciam «a identidade de quem participou nessa luta».

Ao convite responderam afirmativamente mais de três dezenas de pessoas. Houve quem tivesse comparecido com os cônjuges, outros levaram os filhos.

A ideia de juntar os antigos «guerrilheiros» nasceu após os contactos de Raimundo Narciso, no âmbito da preparação do livro ARA: a História Secreta do Braço Armado do PCP. Para a elaboração do livro - que tem a chancela da Dom Quixote e que será lançado este mês - o autor contactou os antigos «camaradas de armas». Daí ao convívio deste domingo foi um passo. O anfitrião garantiu os grelhados e o vinho da região, os convidados levaram os doces e os bolos. Das bombas e das armas, empunhadas outrora, apenas a recordação. Cada um foi convidado a evocar um episódio pessoal do combate contra a ditadura. Houve quem recordasse a prisão e a tortura, outros contaram peripécias ligadas às sabotagens, ou os medos e aventuras clandestinas.

Muitos nomes são desconhecidos do público. Destaque, em todo o caso, para os principais operacionais vivos: Manuel dos Santos Guerreiro (que hoje é empresário), José Brandão (ex-sindicalista da UGT), Manuel Policarpo Guerreiro (empresário), Carlos Coutinho (jornalista), Amado Silva (agrónomo), António Pedro Ferreira (economista), Ramiro Morgado (lapidador de diamantes) e António João Eusébio (funcionário do PCP).

Muitos dos ex-«aristas» foram abandonando o PCP. Alguns aderiram ao PS (caso de Raimundo Narciso), outros estão no BE, outros deixaram a militância partidária. Não estiveram em Torres Vedras dois históricos do PCP, com responsabilidades na direcção política da ARA: Jaime Serra e Joaquim Gomes. Entre os quadros da ARA já falecidos, encontram-se alguns nomes míticos do partido, como Francisco Miguel, Gabriel Pedro, Rogério de Carvalho e Ângelo Veloso.

A história secreta da ARA
José Pedro Castanheira
Foi a 26 de Outubro de 1970 que a ARA se estreou, com a sabotagem do navio «Cunene», que transportava material para a guerra colonial. No livro «Acção Revolucionária Armada - A história secreta do braço militar do PCP», o principal cérebro da organização, Raimundo Narciso, conta como tudo se passou.
“Depois duma longa espera até às quatro da madrugada, foi com enorme alívio que vi chegar o Coutinho. Estava com o credo na boca com tamanha demora. Teriam sido apanhados pelo barco da polícia marítima? Alguma complicação com a Guarda Fiscal à saída do rio? A carga não se agarraria bem ao costado, debaixo de água, como convinha? O tempo passava lento e na rua não se via vivalma. Quem sabe se não se decidiram a sair pela praia em Algés em vez de sair na doca da Rocha do Conde de Óbidos. Animava-me. Ao volante do Opel verde escuro, no alto da Rua Barata Salgueiro via extinguir-se ao longe o movimento da Avenida da Liberdade. Há muito que tinha passado o último guarda nocturno e até a última prostituta. Contava as horas minuto a minuto.

Afinal a operação foi realizada sem incidentes. Apenas com alguns sustos pelo meio mas sem outras consequências. Quando se aproximaram do paquete Vera Cruz, destino prioritário das bombas, viram aproximar-se, rio acima, o barco patrulha da polícia marítima. Parou um pouco abaixo do paquete, mas em posição que não permitia a aproximação do Gabriel Pedro. Esconderam-se atrás de um escuro e longo cargueiro acostado à amurada, aguardando que a lancha da polícia marítima se fosse embora. De tempos a tempos vinham espreitar por detrás da popa do navio mas o barco da polícia não dava sinal de sair. O Gabriel Pedro queria esperar mas o «Meneses» lembrou-lhe os relógios que engravidavam as cargas explosivas e estavam regulados para as cinco da manhã. Era prudente despacharem-se. O Gabriel Pedro, talvez por não ser da sua conta, já se não lembrava desse importante pormenor e concordou que as latas começavam a ser uma companhia pouco recomendável. Optaram pelo Cunene que estava próximo e não desmerecia do Vera Cruz. Remaram rio acima e meteram-se ao interior da doca. Tiveram de se abaixar para passar entre as águas subidas da maré cheia e os ferros ferrugentos que baixavam da ponte levadiça que liga o cais à Avenida Vinte e Quatro de Julho.

Material utilizado pelos técnicos e operacionais da ARA. Tudo era planeado e ensaiado no laboratório montado em Arruda dos Vinhos. O paiol estava escondido no Maxial (Torres Vedras). Em vinte meses foram efectuadas onze sabotagens
O Cunene ali estava, mesmo encostadinho a eles. Olhado cá de baixo lembrava o Gigante Adamastor, mas o sossego da doca da Rocha do Conde de Óbidos, o Gabriel Pedro ali ao lado, sereno e familiar, e em especial a imobilidade paquidérmica do grande cargueiro cumpliciavam-se para dar ao local e ao momento um ar mais de Cabo da Boa Esperança que das Tormentas. O Cunene parecia colaborar tapando a luz dos candeeiros da doca e deixando na sombra o barco a remos. Gabriel Pedro aproximou ainda mais o barco do graneleiro. Carlos Coutinho apalpou o costado do navio para verificar se estaria suficientemente limpo para a ele aderirem os ímanes. Já que trouxera uma escova de aço achou melhor tornar útil o instrumento e dar uma escovadela na chapa pintada do barco, uns palmos abaixo da linha de água. A colocação da lata com o TNT não foi fácil por ter de ficar toda debaixo de água. O plano não previa que Carlos Coutinho saísse à água nem fizesse de mergulhador. Nem convinha molhar a roupa, pois tinha de sair enxuto à cidade e sem aspecto marítimo. No local as dificuldades revelaram-se maiores. Aí tiveram de conjugar esforços e saberes e depois de várias ameaças do barco em atirar o Carlos à água, este conseguiu finalmente colocar a carga no sítio certo com a ajuda hábil do seu companheiro na manobra do barco. Gabriel Pedro remou então para a popa do Cunene e aproximou-se do hélice para que Carlos Coutinho pudesse situar a segunda carga explosiva próxima do veio daquela montanha de aço. Com a experiência da primeira colocação Carlos Coutinho sentia-se quase um veterano e foi à primeira tentativa que colou junto do veio do barco a lata de tinta agora reciclada em poderosíssima bomba naval. Verificou que estava bem presa e não se soltava.

O Gabriel Pedro remou forte para junto dos batelões que descansavam dentro da doca. O barco deslizava em segredo pelas sombras do cais. Os remos entravam na água sem ruído e a compasso, guiados por mão experiente. O Carlos ainda se ofereceu para remar mas o Gabriel Pedro, apesar de muito cansado da viagem de milhas e milhas, abanou, negativo, com a cabeça.

- Ele não percebia nada daquilo, dizia-me o Gabriel Pedro, no dia seguinte. Dei-lhe os remos quando vínhamos para baixo, para descansar um bocadinho, mas ele não sabia remar. Tirei-lhos logo das mãos.

Quando mais tarde comentei com o Coutinho o seu fraco estilo de remar, protestou. Que não senhor, até rema muito bem, o Gabriel Pedro é que é um picuinhas, que os remos não entravam na água como devia ser e outras chinesices.

Enfim, critérios, pensei, dando razão ao Gabriel Pedro, que é quem sabe de remos. Na doca não conseguiram encontrar as escadas de pedra na amurada, porque toda a muralha estava ocupada com navios e batelões. A subida para terra tornou-se de repente uma dificuldade inesperada. A única possibilidade era trepar aos batelões. Assim fizeram depois de abandonarem o valoroso barco a remos a uma vida livre e sem dono. Tiveram de saltar duma para outra embarcação, e, com o balancear, despertaram em sobressalto o habitante solitário duma delas que dormia debaixo dum oleado e não ganhou para o susto. Valeu-lhe o Gabriel Pedro com um gesto rápido a responder de rijo e com voz calma: que durma bem que eles vão fazer o mesmo depois da missão cumprida. Mais à frente tiveram de saltar como uns fantasmas por cima dum pescador assustado que se aquecia numa fogueirinha no fundo dum batelão, enquanto preparava iscos.”

(Do Capítulo I – A Sabotagem do Cunene)

 18-11-2000
  ENTREVISTA conduzida por José Pedro Castanheira 
  
    (Extractos)
  Raimundo Narciso
Militante do PCP, na clandestinidade desde 1964 até ao 25 de Abril, teceu a rede da ARA e planeou quase todas as suas operações, o que levou a PIDE a pôr-lhe a cabeça a prémio. Funcionário do partido e membro do Comité Central, foi expulso do PCP em 1989, após a queda do Muro de Berlim. Aos 62 anos, eis algumas memórias do guerrilheiro, formado em Cuba e na URSS
A decisão política de criar a ARA data de 1964, mas ela só começou a actuar seis anos depois. Porquê esta demora?
Raimundo Narciso, com Manuel Santos Guerreiro, ao volante da sua furgoneta  que serviu para o transporte de explosivos e várias operações da ARA.
O atraso deve-se a duas razões fundamentais: as sucessivas ofensivas da PIDE contra o PCP, desmantelando várias organizações e levando à prisão numerosos quadros - entre os quais Rogério de Carvalho, o primeiro dirigente da ARA, detido em finais de 1965. A segunda razão foi o relativamente fraco empenhamento da direcção bdo PCP na concretização das chamadas «acções especiais».

Começou por frequentar um curso de guerrilha em Cuba.

Em 1965. Saí legalmente do país, no comboio Sud-Express, e fui até Moscovo, onde me reencontrei com o meu controleiro, Rogério de Carvalho, e encontrei pela primeira vez Álvaro Cunhal. Estive em Moscovo cerca de 15 dias, com o Francisco Miguel, o Manuel Rodrigues da Silva e outros dirigentes do PCP. Fui depois para Cuba, onde estive três meses e meio, com o Rogério. Estava previsto que fossem mais dois militantes.     
Que preparação receberam em Cuba?

Não foi propriamente instrução militar. Foi mais manejo de armas e explosivos - mas isso já eu dominava, da minha longa experiência militar. O mais aliciante foi conhecer o país, de lés a lés. Fomos instalados numa vivenda, num bairro de luxo mais ou menos equivalente ao nosso Restelo, que antes de Fidel Castro estava vedado a cubanos pretos - à excepção da criadagem.

Em toda a existência da ARA, só você e António Pedro Ferreira se mantiveram sempre ligados à organização.

Fomos os únicos. Houve muitas prisões, logo de início. Seis meses depois de entrarmos no país o Rogério de Carvalho foi preso. O mesmo sucedeu a várias pessoas que nos deviam apoiar. Fiquei nove meses na clandestinidade sem qualquer ligação ao partido. E sem dinheiro. Tive de viver da quotização de uns poucos militantes que tinha e recorri à família, através da minha irmã. Só no Verão de 1966 é que a direcção do partido conseguiu encontrar-me - e por mero acaso. Foi o Ângelo Veloso quem foi ao encontro combinado, na mata de Sintra.

Foi então frequentar um segundo curso, de formação política, na URSS.

A direcção do partido propôs que eu fizesse uma pausa no meu trabalho. Estive nove meses na Escola Central da Konsomol, em Moscovo, onde conheci a minha futura mulher, Maria Machado. Quando regressei, em 1967, retomei os contactos com Ângelo Veloso e com os quadros com quem tinha trabalhado.

Entretanto, há um segundo grupo que vai receber formação de guerrilha em Cuba.

Julgo que seriam uns quatro. Nenhum regressou a Portugal. Uns desistiram, outro foi preso em Espanha

Em 1968, há um terceiro grupo a receber formação militar, desta vez em Moscovo.

Era um grupo de três ou quatro, entre os quais Francisco Miguel e o «Almendra». Mais tarde, entre Julho de 71 e Maio de 72, haverá um quarto curso, também na URSS.

É o curso frequentado por Jaime Serra...

... e por outros operacionais já experimentados, como o Carlos Coutinho, o Ângelo de Sousa e o António Eusébio.

Mas nem por isso a ARA suspendeu as suas acções.

Exacto. Eu e o Francisco Miguel assegurámos a direcção da ARA, que nesse período desencadeou três acções: o assalto ao paiol na serra da Amoreira, a sabotagem do Comiberlant (o quartel da NATO) e o rebentamento do armamento no navio Muxima.

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Disse que a direcção do PCP mostrou resistências à luta armada. Quem?

Houve resistência de quadros superiores e intermédios porque era essa a orientação ideológica vinda de cima. Álvaro Cunhal estava na origem da organização mas não queria que as cabeças «esquentassem» com a luta armada, que não estava inscrita na táctica política delineada. Aliás, dava-se combate político e ideológico às forças - como grupos maoístas - que defendiam a luta armada. Depois da primeira acção (o Cunene), houve organizações do PCP que não aplaudiram. Houve mesmo quem tivesse condenado.

Quem?

Estruturas das universidades de Coimbra e do Porto, por exemplo, e até alguns militantes que estavam nas prisões.

Como!?

Sim, em Caxias e em Peniche, e que a classificaram como uma acção aventureira... É que, na altura, ainda ninguém sabia o que era a ARA. Por outro lado, houve aplausos de organizações maoístas e de dissidentes do PCP, que julgavam que era uma coisa sua. Foi Ângelo Veloso, que já estava preso, quem esclareceu os camaradas que aquilo era nosso. No momento seguinte houve uma inversão de posições, com o júbilo dos militantes do PCP e o desânimo dos outros...

No início até a PIDE julgou que a ARA era maoísta. Isso mesmo chegou a ser dito pelo director-geral, Silva Pais. Como é que se sentiu na pele de um esquerdista?

Comecei por achar graça pelo logro em que ele caiu. E pela convicção de que, a curto prazo, se desenganaria. Como aconteceu pouco depois, com a operação na base de Tancos, que mostrou que possuíamos uma capacidade operacional muito grande. Na altura, não havia nenhum grupo político - para além do PCP - com tal capacidade.

O livro baseia-se, em larga medida, em notas escritas depois da Revolução...

...Mas que não se destinavam a um livro. Depois do 25 de Abril, de vez em quando, nas férias, escrevi alguns episódios da clandestinidade. Comecei a escrever por volta de 1980 - nos primeiros anos estive muito mobilizado pela revolução e pela actividade política. Só recentemente é que procurei uma editora. As notas que tinha davam para um livro de 600 páginas! Deu-me muito trabalho reorganizar aquilo tudo. Acabei por retirar episódios da vida da clandestinidade, sem relação directa com a ARA

Outra fonte do livro é o arquivo da PIDE/DGS. Imagino que terá tido acesso ao arquivo logo a seguir ao 25 de Abril.

Pessoalmente não. Alguém me deu fotocópias de documentos da ARA que estavam no arquivo e da minha ficha na PIDE.

Quantos pseudónimos usou?

Muitos. Por vezes, tinha um pseudónimo para cada militante ou organização. Por razões de segurança. Luís era o mais comum, porque funcionava para a direcção do partido. E Carlos também. Além disso, tinha que ter pseudónimos para a documentação
falsa - bilhetes de identidade, cartas de condução e outros documentos. O último foi o de José Lopes da Silva. Procurei os nomes mais comuns entre os portugueses.
Em quantas casas viveu?

Três quartos independentes e sete casas: em Alcabideche, Ericeira, Vale de Lobos, Odivelas, Praça do Chile, Benfica e Rego.

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Tiveram dois filhos na clandestinidade. À primeira, deram o nome de Leonor.

Que era, na altura, o pseudónimo da minha mulher.

E ao outro?

José Alexandre. Creio que foi a última criança nascida na clandestinidade: a 11/3/74.

Em 1972, o seu pai morreu. Você só soube através de um anúncio publicado num jornal pela sua irmã.

Foi um momento difícil. Soube depois do funeral. Tive um desgosto grande, por não ter podido acompanhar os seus últimos anos de vida. Teve uma velhice muito desamparada, porque a minha irmã teve de se exilar em Paris. Em dez anos, só vi os meus pais uma vez, dois anos antes de ele falecer. Foi num hotel em Santarém, num encontro montado pelo partido. Fui eu, a minha mulher e a minha filha, a única vez que o avô e a neta se viram.

Quanto ganhava?

Em Abril de 1974, o meu salário mensal eram 970 escudos, mais um subsídio por cada filho. O salário servia fundamentalmente para a alimentação e alguma roupa. O partido também pagava a renda da casa, que era, na altura, 980 escudos. Tinha ainda uma verba extraordinária, para acorrer a necessidades, ou até para permitir uma eventual fuga.

Onde é que o PCP arranjava o dinheiro?

Suponho que, pelo menos em grande parte, da União Soviética. Mas claro que eu não fazia esse tipo de perguntas. Vivíamos num ambiente de grande contenção financeira.

Para a primeira acção - a sabotagem do navio Cunene, em Outubro de 1970 - recorreu a um velho quadro do partido.

Gabriel Pedro. Veio de Paris propositadamente. Fui eu que o recebi em Lisboa.

Velho no sentido literal, com 72 anos...

Era um homem muito rijo, profundo conhecedor do rio Tejo. Tinha uma história política muito interessante.

Você quase que podia ser seu neto.

Quase. O que não impediu um tratamento de igual para igual. Era um tipo muito despachado e vigoroso. Foi ele quem escolheu o barco a remos onde o comando se fez transportar. Escolheu um dos que se encontrava na praia de Algés, mas, dois dias antes da sabotagem, decidiu que devia ser outro, que estava na doca do Poço do Bispo. Fiquei em pânico quando me comunicou esta alteração. Tivemos de refazer o plano todo. Foram momentos de grande tensão!

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Nunca pensaram num atentado contra Marcello Caetano?

Não. Afastámos sempre atentados pessoais. Inclusive a pides.

O inspector Tinoco, da PIDE, é um dos «actores secundários» do livro. Conheceu-o?

Nunca vi nenhum pide em carne e osso, pelo menos que soubesse e pudesse identificar.

A ARA suspendeu as suas actividades em Maio de 1973. No livro, fica-se com a impressão de que não concordou muito com essa decisão.

Concordei com o objectivo político em geral. Houve um debate entre nós. Havia dúvidas e a decisão não foi absolutamente evidente. Do meu ponto de vista, havia mais razões para suspender do que para continuar.

Nessa altura, a ARA estava diminuída, com nove dos seus operacionais presos.

Esse foi, naturalmente, um factor que pesou, mas não foi decisivo. Nessa altura era mais fácil recrutar novos elementos e fortalecer a organização. O argumento que mais pesou foi de carácter político.

Ao contrário da muitos heróis de ficção, reconhece no livro que sentiu medo.

Em vários momentos. Tratou-se, em todo o caso, de um medo pontual. Conheço pessoas que foram assaltadas por um estado de medo generalizado. Houve mesmo quem tivesse entrado em colapso, obrigando a uma retirada precipitada para o estrangeiro, ou a tratamento psicológico e mesmo psiquiátrico.

Teve certamente medo de ser preso. Seria capaz de suportar a tortura?

A resposta mais simples é: não sei. Mas estava convencido que sim, que resistiria a falar. A minha adesão ao PCP e a passagem à clandestinidade foram decisões maduramente meditadas, tendo em conta exactamente esse perigo. Interiorizei que seria capaz de sofrer todas as torturas e inclusive de sacrificar a própria vida sem denunciar as outras pessoas e a organização. Mas o que eu faria, caso fosse preso e torturado, ninguém sabe! Houve pessoas que passaram à clandestinidade de forma muito leviana - e os resultados foram terríveis para elas e para o partido.

O facto de nunca ter sido preso não o prejudicou no PCP?

No PCP a prisão é uma espécie de medalha. Mas nunca me senti prejudicado por isso.

A ARA foi uma organização terrorista?

Seguramente que não. Não só pelos princípios que defendia, como pela sua prática. A ARA tinha um objectivo muito claro na estratégia do PCP para o derrube do fascismo, consignada na fórmula da insurreição popular armada. Era vista como um elemento potenciador da luta de massas e de desgaste do aparelho colonial e repressivo. Visava alcançar um forte impacto na consciência da população portuguesa e na própria opinião pública internacional. Todos estes objectivos só podiam ser levados a bom termo por uma organização não terrorista. Nunca atacámos pessoas, nem bens que não estivessem ligados à política colonial e fascista.

As Brigadas Revolucionárias e a LUAR não foram terroristas.

Sem dúvida que não.

E quanto às FP-25?

Essas tinham uma natureza diferente. Invocavam razões de outra natureza, como o castigo ou a vingança de classe. Cometeram atentados contra pessoas e fizeram vítimas inocentes. Esses métodos eram de repudiar.

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Se pudesse voltar atrás na sua vida de clandestino, faria as mesmas coisas?

Sabendo o que sei hoje, certamente que não faria muitas coisas. Mas, não sabendo, faria tudo o que fiz - porque as fiz com muita consciência e convicção.
Arrepende-se de alguma coisa?

De nada! Sinto-me perfeitamente bem, não só com a minha consciência, como com o meu passado. Mas não concordo que tenha sido qualquer coisa de glorioso. É um passado banal, se se tiverem em conta as circunstâncias.

 18-11-2000
Continuação da entrevista de Raimundo Narciso ao Expresso (Revista) conduzida por José Pedro Castanheira (Extractos)
O que diria a Cunhal
Foi um dos quadros que mais anos foi funcionário do PCP.
Fui funcionário desde 64 - quando entrei na clandestinidade - até Maio de 89, altura em que fui expulso do partido. Pediram-me para me demitir, mas respondi que tinham de fazer a despesa da minha expulsão. Agora, pedem aos quadros que se afastam para o fazerem devagarinho, de modo que os militantes e os eleitores se não apercebam.

Foi fácil encontrar emprego cá fora?

Entrei no mercado de trabalho aos 50 anos... O meu primeiro emprego fora do PC foi numa Federação de Cooperativas. Quando o PC ganhou a sua direcção, fui saneado por razões políticas. Depois fui gestor em várias empresas, incluindo o Chapitô e actualmente sou administrador numa empresa de Sines.

Durante alguns anos, a ARA acumulou um arsenal considerável.

Além dos explosivos, possuíamos pistolas, metralhadoras, granadas - tudo desviado do exército colonial. No máximo, teríamos 200 armas.

O que foi feito delas, depois da revolução?

Não sei. Acho que ou foram inutilizadas ou o PCP se desembaraçou delas. O mais provável é que estejam no fundo do mar.

Não foram utilizadas na revolução?

Nessa altura, grande parte delas estava escondida. Na defesa dos centros de trabalho só foram utilizadas armas legais.

Depois do 25 de Abril foi durante anos o responsável pelo sector militar do PCP.

Desde 27 de Abril de 1974 até sair. Foi essa uma das minhas funções: um trabalho de organização e influência política, feito praticamente na clandestinidade.

Era o único responsável?

A frente militar foi acompanhada directamente pelo próprio Álvaro Cunhal. Do mesmo modo como Mário Soares e Sá Carneiro certamente terão feito nos respectivos partidos, embora de maneiras diferentes. Eu, o Jaime Serra e mais dois ou três fizemos esse trabalho de forma sistemática. Aliás, retomei o trabalho que havia feito nos anos 60.

Conviveu muito com o falecido Ângelo Veloso, que foi candidato a Belém.. Como é ele se situaria na era pós-comunista?

É difícil dizer. Ele tinha uma personalidade muito forte. Não era um 'yes-man', não servia para o papel que o Carlos Carvalhas desempenhou. Álvaro Cunhal teve muito critério na escolha do sucessor. Ele conhece bem os homens e o poder. Teria que evitar a experiência de Espanha, onde o Gerardo Iglesias sacudiu a tutela de Santiago Carrillo e não aceitou ser o seu homem de palha. Por outro lado, em plena época da 'perestroika', não podia ser um façanhudo da clandestinidade. Tinha que ser um dirigente 'soft', que correspondesse ao momento da 'perestroika' e da 'glasnost'. Não era muito difícil chegar ao Carlos Carvalhas. Foi a melhor escolha para Álvaro Cunhal.

...

Depois da sua expulsão, esteve alguma vez com Cunhal?

Não voltei a encontrá-lo.

Despediu-se dele?

Não me despedi de ninguém. Foi uma das pessoas que sempre me cumprimentaram, ao contrário de outros que, depois do Congresso de Dezembro de 1988, deixaram ostensivamente de me falar. Nunca tive um mau relacionamento com ele, do ponto de vista pessoal. As incompatibilidades foram de carácter estritamente político.

Se voltasse a estar com Cunhal, o que lhe diria?

Informava-o, confidencialmente, que se confirma que o muro de Berlim caiu e o comunismo falhou. E desejava-lhe uma reforma tranquila, sem a maçada de reuniões com Domingos Abrantes e José Casanova.

Quem foi quem?
José Pedro Castanheira
Foi preciso que transcorressem 26 anos sobre a instauração da liberdade para se ficar a conhecer a rede daquela que foi a principal organização armada da oposição à ditadura.
No seu livro, Raimundo Narciso refere-se a 43 pessoas, de que dá uma curta biografia. Lá estão os nomes de alguns históricos do PCP, responsáveis pela direcção política da ARA. É o caso dos já falecidos Rogério de Carvalho e Francisco Miguel, presos respectivamente 15 e 21 anos. Um dos fundadores foi o também falecido Ângelo Veloso, candidato à Presidência da República em 1985. A Joaquim Gomes coube assegurar, durante sete anos, a ligação entre a direcção do partido e o seu braço armado. Também Jaime Serra é amplamente referido.

A maior parte dos operacionais são praticamente desconhecidos do grande público. Os nomes mais familiares são porventura o jornalista Carlos Coutinho e o ex-sindicalista da UGT José Brandão. É muito diversificada a actual actividade profissional dos ex-guerrilheiros: há empresários (Policarpo Guerreiro e Santos Guerreiro), economistas (António Pedro Ferreira), agrónomos (Amado da Silva), engenheiros (Jorge Trigo de Sousa), lapidadores de diamantes (Ramiro Morgado), funcionários do PCP (António João Eusébio). Muitos quadros da ARA já não pertencem ao partido. Se uns deixaram a actividade partidária, houve numerosas 'deserções' para o PS e há quem milite no Bloco de Esquerda. Pertencente ao Comité Central do PCP, há apenas um: Mário Abrantes, a viver nos Açores.

Uma parte da velha rede permanece na sombra. Com efeito, o autor não identifica meia dúzia de pessoas. «Contactei quase todos os que são nomeados. Houve alguns que não quiseram ser identificados e eu respeitei essa vontade». É o caso de um tal 'Romeu'; ex-militar das tropas especiais, O mesmo sucedeu com um engenheiro de pseudónimo 'Morais', com «ligação familiar a dirigentes do regime fascista». Outro pseudónimo é 'Almendra', sobre o qual o leitor fica apenas a saber que é um conhecido artista. Já verdadeiro é o apelido Leonel, de um engenheiro que pediu para ficar oculto, «creio que por considerar isso pouco compatível com a sua actividade profissional». Segredo também quanto a uma preciosa fonte do Estado-Maior do Exército, sobre quem o autor se limita a informar que «é um coronel na reserva».»

Fonte: Raimundo No Sapo

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