terça-feira, 11 de agosto de 2015

RAIMUNDO NARCISO

Acção Revolucionária Armada

«Bota Acima - Imagina que o Batista Bastos te perguntava onde estavas no 25 de Abril. O que lhe respondias?
Raimundo Narciso – Estava em Odivelas.

BA – Mas estavas na clandestinidade?
RN – Vivia clandestino, dando o menos possível nas vistas, num prédio com 24 inquilinos.

BA – Vivias sozinho?
RN – Com a Maria Machado e os nossos filhos, a Ilda Leonor com 4 anos e o José Alexandre com um mês.

BA – Com identidades falsas…
RN – Tudo falso. Nome, profissão, origens e todas as histórias que contávamos aos vizinhos, antecipando-nos à sua natural curiosidade e satisfazendo-a com a iniciativa do nosso lado.

BA- Muitos sustos?
RN – Fomos treinados a controlar a coabitação com o medo e os sustos. No descontrolo é que está o perigo.

BA – Pertencias ao Comando Central da ARA, a Acção Revolucionária Armada, não é assim?
RN – O Comando Central da ARA era constituído por Jaime Serra, um dos mais altos dirigentes do PCP (operário, então com 49 anos), Francisco Miguel, membro do Comité Central do PCP (operário, então com 62 anos) e eu próprio, estudante do IST, 32 anos.

BA – Nunca foste preso nos 10 anos que passaste na clandestinidade?
RN – Não. Procurava desencontrar-me da PIDE. E quem conhecia a minha casa e foi preso, como foi o caso de Rogério de Carvalho, meu “controleiro”, no início da criação da ARA, não me denunciou nem disse nada daquilo que a PIDE pretendia. Isso custou-lhe mais 9 anos de cadeia até ao 25 de Abril de 74, além da tortura.

BA – Quando é que a ARA esteve em actividade?
RN – De 1970 a 1972, intervalo em que desencadeou 16 acções armadas. Numa das quais, no quartel da Base Aérea 3, em Tancos, em 8 de Março de 1971, destruiu e danificou 28 aviões e helicópteros. Por razões políticas suspendeu a sua actividade em Maio de 1973. E extinguiu-se após a “evolução”, isto é, a revolução do 25 de Abril de 1974.

BA - A ARA foi aquilo que se possa classificar como uma "organização terrorista"?
RN – A PIDE, redenominada DGS por Marcelo Caetano, assim nos designava. Mas a ARA, como as BR ou a LUAR, não era uma organização terrorista.

BA – Como é o caso da Al Qhaeda.
RN – Como é a Al Qhaeda, o Hamas, o Hezebollah, o Governo de Sharon, o IRA, a ETA.

BA –Achas que a guerra do Iraque serve a luta contra o terrorismo?
RN – O resultado está à vista e mostra o contrário. As “boas razões” invocadas para a invasão ou eram falsas ou hipócritas. A Administração Bush aproveitou esse pretexto, aliás de forma canhestra, para outros negócios. Mas estes parece que estão a sair-lhes furados.

BA – E também se pode falar com propriedade em terrorismo de Estado?
RN – É o que Ariel Sharon faz, em contra-resposta, à resposta dos palestinianos. Uns tem tanques e helicópteros, outros têm pessoas desesperadas até a loucura com bombas à cinta. O terrorismo é um gravíssimo problema da actualidade. Mas convém não ignorar que as guerras, como se vê no Iraque, representam o terror generalizado e levado ao extremo.

BA – Voltando à ARA. Dizes que a ARA não era uma organização terrorista. Em que baseias esta opinião?
RN – A prova é que os alvos da ARA foram exclusivamente a logística e as estruturas da guerra colonial e do aparelho repressivo fascista. E as acções armadas eram criteriosamente planeadas para, tanto quanto possível, não atingirem pessoas. Por isso, não por acaso, em toda a actividade armada da ARA apenas morreu uma pessoa, acidentalmente.

BA – Como foste parar à direcção da ARA?
RN – Era militante do PCP. Fazia parte dos que defendiam a utilização de acções armadas no combate à ditadura, opiniões que acabaram por vencer. Convidaram-me para passar à clandestinidade para com Rogério de Carvalho, António Pedro Ferreira e outros, criar a organização que as realizasse. Dois anos antes tinha sido convidado para passar à clandestinidade. Recusara. Achei que não era convite que se fizesse a quem levava uma vida tão agradável. Mas agora não podia deixar de aceitar. Pois se eu próprio defendia que se criasse tal frente de luta!

BA - Que treino tiveste?
RN - Tinha-me treinado no Exército Português. Nas seis unidades do Exército que frequentei como oficial miliciano durante quase 4 anos. Uma licenciatura!

BA – Mas não tiveste treino em Moscovo?
RN – Em Moscovo, frequentei um curso político. Treino militar foi em Cuba. Durante alguns meses.

BA - Como viveste os "sucessos" e os "insucessos" da ARA?
RN - Os primeiros com os júbilos das vitórias. Os segundos com paciência e determinação. Foram anos a trabalhar e a PIDE a desfazer. É que a criação das estruturas e organização da ARA foi entremeada por vagas de prisões, interrupções e levou anos. Mas pensávamos que com tempo e determinação havíamos de levar a carta a Garcia. Ou seja, ajudar ao derrube da ditadura.

BA – Quais eram os critérios de recrutamento usados na ARA?
RN - Firmeza política, alicerces psicológicos fortes, coragem e ranger de dentes. Como era difícil encontrar tudo isto junto, além da loucura de arriscar a vida, recrutávamos o que se aproximasse mais disto. Às vezes, enganávamo-nos. Mas os que resistiram e ficaram eram, para o efeito, material humano do melhor.

BA – Havia tensões e conflitos entre a "ala política" e a "ala operacional" da ARA?
RN – Não. Porque não havia uma “ala política” e uma “ala militar”. A ARA era, do ponto de vista da organização, uma entidade autónoma mas do ponto de vista político era uma organização do PCP. Uma organização pequena, muito compartimentada, onde cada um conhecia um, dois ou três companheiros pelo pseudónimo e onde discrepâncias, diferenças de opinião ou de sensibilidade não ganharam a notoriedade de “tensões” ou “conflitos”.

BA - Como é que se fazia a ligação entre a direcção da ARA e a direcção do PCP?
RN - Um membro da Comissão Executiva do PCP, o mais elevado órgão de direcção no interior do país, vinha reunir espaçadamente com o Comando Central. Nos intervalos, se necessário, essa ligação era assegurada por Jaime Serra.

BA –A esta distância, pesa-te na consciência (pessoal e política) teres sido dirigente de uma organização que andou "a largar bombas"? Sabendo o que sabes hoje, voltarias a pertencer à ARA?
RN – Não, não me pesa na consciência. Pelo contrário. Quanto à segunda questão, diria que sabendo o que sabia no passado, faria tudo como dantes. Se acrescenta alguma coisa, digo ainda que me sinto bem com a minha consciência.

BA – O que andaste a fazer no PCP desde que a ARA foi extinta até abandonares este partido?
RN – Andei a lutar pelo comunismo, pelos interesses da classe operária, pela pureza do marxismo-leninismo, pela revolução universal, pelo Homem Novo, pelo bem do povo e coisas assim. No concreto, tratava das questões relacionadas com as Forças Armadas, com a Defesa Nacional, com Relações Internacionais e actividade política corrente.

BA – O que te levou a saíres do PCP e aderires ao PS?
RN – Foram decisões distintas e sem relação uma com a outra, separadas por vários anos. A saída do PCP teve a ver com o facto de que todas aquelas razões que me mantinham lá depois de atingido o grande objectivo do derrubamento da ditadura, se foram a pouco e pouco, a partir dos anos oitenta, revelando cada vez mais precárias e, por fim, equivocadas ou esgotadas. Depois das experiências do INES (Instituto Nacional de Estudos Sociais) que juntou, em 1989/90, muitas pessoas ilustres como o Nobel Saramago, Piteira Santos, Orlando de Carvalho, Vital Moreira, Gomes Canotilho, Barros Moura, José Luís Judas e muitos outros, e depois da experiência da Plataforma de Esquerda, nos anos seguintes, a adesão ao PS foi uma decisão natural. Era, na minha opinião, o partido que mais condições oferecia para o exercício de uma actividade política com interesse para o país.

BA –A tua experiência como deputado pelo PS, foi gratificante?
RN – Teve muitos aspectos gratificantes e deu para conhecer ao vivo e por dentro, a classe política portuguesa (antes só conhecia a do PCP). Mas acho a actividade parlamentar, pelo menos na forma em que ocorre, pouco estimulante. Talvez esta opinião decorra, em parte, de me ter iniciado nas actividades parlamentares 30 anos mais tarde do que é habitual suceder a um activista político.

BA - Como e por onde andas hoje em termos de "praxis" política?
RN – A minha actividade política está reduzida ao mínimo. Acompanho com interesse a vida política nacional e internacional. Vou a um ou outro evento político. Participo num dos Gabinetes de Estudo do PS. E é tudo.

BA - Queres dar um breve testemunho sobre um saudoso amigo comum - o António Graça - e a quem, afinal, se deve que esta entrevista tenha sido possível?
RN – O António Graça era um dos quatro ou cinco membros do Comité Central que em 1987 e 1988 desenvolveu, naquele órgão do PCP, uma assinalável actividade crítica à linha política da direcção de Cunhal. Demitiu-se em 1991. Foi desde muito novo um destemido lutador contra a ditadura fascista e militante do PCP. Desenvolveu nos anos cinquenta e sessenta, como quadro clandestino do PCP, importante actividade política que o levou à prisão durante seis anos a partir de 1964. Submetido a torturas pela PIDE para denunciar companheiros, resistiu a tudo. Por isso, no PCP, pertencia à galeria dos heróis, até ao momento em que contestou as orientações e as práticas da direcção do partido. Foi um dos iniciadores do INES e da Plataforma de Esquerda. Não aderiu ao PS nem foi para a Política XXI. Defendia que os ex-comunistas deviam, com outros, criar um partido próprio. António Graça, foi membro do CC do PCP de 1979 a 1988, participou nos trabalhos da Comissão de Extinção da PIDE/DGS em 1974 e 75. Nos anos seguintes, foi responsável pelos serviços de informação do PCP. Era um quadro político com grande experiência, argúcia e uma prodigiosa memória. Faleceu com 60 anos, em 1 de Julho 1999. Era muito respeitado e estimado pelos os seus companheiros políticos. Era meu amigo. Era teu amigo.»

Fonte: Água Lisa

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