quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ARTE XÁVEGA

«Donde vêm os nossos barcos?

Jornal JOÃO SEMANA (01/02/1978)
TEXTO: Almeida Langhans

Donde vêm os nossos barcos? De longe, muito longe, onde três continentes quase se tocam: Europa, Ásia e África. Mais precisamente: da ilha de Creta, à entrada do mar Egeu, entre a Grécia e a Turquia.

Os cretenses (melhor: eteocretenses) navegavam e pescavam por entre as quase 2000 ilhas do mar Egeu, e alongavam-se pelo Mediterrâneo que, mais tarde, seria o «mare nostrum» (nosso mar) dos romanos. (Também nós temos aqui um: «o nosso mar»!).
Os barcos de remos cretenses assemelhavam-se aos da Fenícia, ali perto, de remos compridos. Nem admira, pois seria natural uma influência mútua na arte de os construir. O nosso barco meia-lua é considerado, por um autor, como perfeito representante do barco fenício, já que, pela forma e subtileza, se assemelha bastante a um modelo encontrado na Caldeia e que deve datar de 3000 anos A. C. Além disso, aproxima-se muito da forma dos barcos actuais da Mesopotâmia, actual Iraque.

Mais fenício, menos cretense, pouco importa para nós. Que se avenham lá os estudiosos, se puderem.
Ouçamos, agora, o que diz Almeida Langhans, num artigo intitulado De volta à ilha de Creta que transcrevemos, com a devida vénia, dum Primeiro de Janeiro de há anos:
"Antes do seu enfraquecimento naval, os Cretenses eram os únicos a navegar pelo mar nas suas naves, de bizarra forma, barcos de calado; e mantinham o exclusivo dos transportes para o Egipto, para a Palestina, para as ilhas do Egeu e para a terra dos micénios. Essas naves estariam nas rotas para as pontas da península itálica e para a ilha Sicília. Viagens de longo curso, rumo ao Ocidente, efectuavam-nas no tempo próprio, seguindo as costas líbicas até para além das colunas de Hércules.(1) Era a rota distante da prata e do estanho que levava às longínquas Cassitérides oceânicas, passando pela base tartéssica na Hispânia, situada para lá do estreito.

Bizarros eram os barcos cretenses, na verdade. Bizarros, se os compararmos com os barcos dos rios de Babilónia ou os de Tebas. Restam-nos imagens deles em fugidias figuras esquemáticas, gravadas em jóias e nos selos cretenses da época minóica: naves curvas, de proa e popa arqueadas para cima e pontiagudas. Dispunham de remos numerosos. Armavam mastro com os seus estais e verga para vela rectangular de grosso pano de linho, reforçado por tiras de couro que se cruzavam em forma de rede. Quando o barco singrava à força de remos, o mastro curto arrumava-se, em encaixe especial, ao longo das bancadas dos remadores. Havendo brisa favorável a aproveitar, armava-se o mastro e largava-se a vela, ajuda apreciável para descanso dos remadores. Os barcos curvos dos cretenses não eram de combate. Lutas navais não as haveria num mar apenas sulcado por embarcações da mesma procedência.
Os barcos deste monopólio de transportes marítimos subiam profundamente os rios e fundeavam nos portos fluviais das grandes cidades do interior continental.
As curvas naves de Creta venciam facilmente o mar. Os barcos curvos de Creta não eram mediterrânicos. Foram talhados e armados para suportar o embate e galgar a onda forte do grande oceano exterior. E dele vieram um dia e fundearam ou vararam na ilha oblonga.

A originalidade do barco vem-lhe da sua forma estranha que as condições hídricas de um mar interior sem rebentação, e quase sem marés, nunca lhe proporcionaria.
O modelo cretense do barco curvo – um barco oceânico – poucos ou nenhuns vestígios deixou na construção naval mediterrânica. Só no calado dos maiores barcos fenícios talvez se possa encontrar qualquer reminiscência do forte barco curvo cretense.
A tese da origem deste barco impunha-se ao observador atento, a partir da própria lógica das estruturas. Nas vagas figuras esquemáticas de um passado milenário e que até nós chegaram, em jóias e selos, encontrámos certa similitude com os barcos de mar e de varar ainda hoje existentes na costa de Portugal – os «meias-luas» da Caparica e da costa até Aveiro.
Uma surpresa singular, porém, aguardava-nos na ilha de Creta. Uma surpresa arqueológica decisiva. Concludente pela imagem. Em Hagia Triada, ao sul da oblonga ínsula, encontrou-se um sarcófago com uma extraordinária pintura a fresco: em tons de oca, terra-de-siena, azuis e verdes esbatidos, desfila um cortejo de oferendas. Dirige-se para uma ara erguida junto de uma árvore. Um sacerdote, de capa de pele, aguarda, solene, as ofertas rituais. Um portador transporta, nos braços, um vitelo pequeno. Outro, leva uma cria semelhante. E outro, que segue à cabeça daquele cortejo, em passada grave e processional, ergue um barco votivo – o barco eteocretense de linhas curvas. O barco meia-lua da costa atlântica da Hispânia. O barco oceânico de proa e popa encurvadas para cima. As neusi koronisin referidas por Homero na Odisseia.
O mesmo tipo de barco que, em modelo e de prata, foi achado pelo grande arqueólogo Leonard Wooley, nas ruínas da cidade de Ur, no país dos letrados sumérios. Um provável exvoto ou presente de nautas hispânicos. Da Hispânia, empório da prata".

(1) Gibraltar»

Artigo publicado no jornal JOÃO SEMANA (1 DE FEVEREIRO DE 1978)

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