«VÁ E VEJA/VEM E VÊ: O FILME SOBRE O ÁPICE DO IRRACIONAL
PUBLICADO POR FERNANDA PACHECO
"Vá e veja" [1985] do diretor Elem Klimov não é MAIS um filme sobre a segunda guerra mundial e sobre o nazismo do tipo que você assiste e no fim volta à realidade como se aquilo fosse mera ficção. É perturbador e sensível. Uma obra de arte que nos leva além da reflexão.
"Vá e veja" [1985] é o filme mais surpreendente que já vi. Assisti três vezes e em todas elas fiquei atordoada, o que é o mínimo esperado diante de tamanha sensibilidade contraposta com as consequências perturbadoras do nazismo. Não é mais um filme sobre a segunda guerra mundial do tipo que você assiste e no fim volta à realidade como se aquilo fosse mera ficção. O diretor Elem Klimov soube usar as imagens para nos aproximar do irracional, do primitivo e do absurdo porque neste filme ele individualiza e centraliza toda a guerra em um único personagem.
Na época com quinze anos, o ator Aleksei Kravchenko foi além de uma simples interpretação cinematográfica. Ele encarnou seu personagem Florya de modo chocante e isso é visível toda hora em que a câmera se apróxima de seu rosto: o olhar do ator ultrapassa qualquer meio de reprodução técnica e ali vimos um ser humano que quase nos convence a esquecer que aquilo é um filme e uma representação. Durante as filmagens o ator teve acompanhamento psicológico e depois do filme ficou anos afastado do cinema.
A história, como já disse, circula em torno dele do início ao fim e começa com todos os detalhes que comandarão o resto do filme. Primeiro aparece um velho ranzinza mandando os jovens pararem de cavar buracos na areia. Certo de que ir à guerra seria uma coisa boa - alienação típica do período - o jovem Florya encontra depois de muito esforço seu passaporte para o alistamento e o segundo detalhe importante: uma arma. É com ela no colo que surge o terceiro detalhe: dentro de um avião nazista que aparecerá várias vezes ao longo do filme [ele torna-se sinal de bombardeio], soldados avistam no chão aquele que eles imaginam ser um guerrilheiro.
No território soviético existia o exército e as guerrilhas, ambos eram miras certeiras dos soldados nazistas.
Com esses três pontos apresentados, Klimov inicia seu filme com Florya feliz sendo arrastado para o acampamento dos soldados soviéticos enquanto sua família se despede angustiada. É neste acampamento que o jovem conhece Glacha - aquela que será sua parceira até certo ponto do filme. Os dois encenam momentos impressionantes com o apoio da excepcional edição de som e quando se veem abandonados pela expedição, em meio ao desespero, bombas caem e destroem o acampamento. Entre lágrimas e risadas, eles formam o retrato da devastação psicológica e física que guerra causou. Os ouvidos de Florya sangram e entra o efeito sonoro: passamos a escutar o filme como se os nossos ouvidos tivessem sido afetados também. No link abaixo tem exatamente esse trecho:
Sozinhos, os dois partem para a casa de Florya que inocentemente acredita que sua família o espera. Sua esperança aumenta quando vê a fumaça da chaminé saindo - afinal, até hoje achamos que isso é uma representação vital, não é mesmo?
Não, não é. A família do jovem estava morta e são as moscas aos montes que anunciam isso dentro da pequena casa. O desespero dele aumenta e ao olhar seu reflexo no fundo de um poço, aparece uma imagem sua envelhecida - a mesma que se constituirá a partir do momento em que ele percebe a crueldade que fora cometida.
Florya surta e o espectador passa a se angustiar, a engolir seco, a se incomodar e isso só vai piorando. Surge a cena do pântano: o ápice do desespero. Nela a alegoria dos efeitos da expansão da guerra e do nazismo nos mostra Florya e Glacha praticamente submersos e lutando para atravessar o lamaçal. É nessa travessia que ocorre a transição do jovem para o homem e aí Florya vai se culpabilizar de vez quando chega ao acampamento de refugiados. Ele é arrastado até um velho conhecido: o ranzinza da primeira cena do filme reaparece com o corpo carbonizado, sussurrando em plena agonia a tortura que fizeram e reafirmando:
- Eu avisei pra vocês não cavarem os buracos.
A ligação é a seguinte: os buracos que Florya cavou lá no início pra encontrar sua arma deixaram uma única mensagem para os nazistas e quando eles o avistaram com ela no colo, não tiveram dúvida e massacraram o povoado daquela região. Para os nazistas todos eram guerrilheiros e portanto, inimigos.
Começa a desfiguração do rosto daquele que até aqui chamei de jovem. Entre tiroteios e bombardeio, Florya vai sobrevivendo em cenários naturalmente calmos (como florestas e pastos) que tornam-se palcos de desespero. Os nazistas enquanto pessoas aparecem apenas como pano de fundo dos horrores que vão acontecendo. É como se homem e máquina tivessem se fundido a favor do ódio. Passamos a ver o irracional humano quando o filme se aproxima do fim e quando o nazismo ganha forma. Refugiado em uma outra aldeia, ele presencia o horror e nós espectadores somos contagiados por uma repulsa enorme. Seres humanos banalizando o mal, desqualificando milhares de pessoas, cometendo barbaridades, estuprando, matando e principalmente, se divertindo. A cena de milhares de pessoas sendo queimadas e agonizadas é aplaudida! A morte vira espetáculo, enquanto Florya enlouquece no chão após conseguir fugir dela pela milésima vez. Detalhe: a devastação da aldeia retratada no filme foi apenas uma das mais de 600 destruídas ao longo do nazismo!
O diferencial do filme é que o espectador toma consciência de todas essas atrocidades através do apelo psicológico. Não há um apelo explícito e muito menos cenas explicadas que fazem do filme algo passivo.
Nos perguntamos: o que é isso? Sim, o que é e não o que foi porque vivenciamos até hoje uma disputa social onde pessoas realmente acreditam que outras são inferiores a ponto de quererem matá-las. A morte continua sendo um espetáculo, principalmente para a televisão.
E falando em banalidade e em espetáculo, surge uma das cenas mais pesadas do filme: soldados colocam Florya de joelhos e um deles aponta a arma para a sua cabeça. Ali temos quase certeza de que será o fim, mas não. Tudo não passa de uma encenação para uma foto! Se o jovem estava desesperado certo de que ia morrer naquele instante, pouco importava. Aliás, seria até melhor para a foto retratar a fragilidade daquele "rato" que em seguida desmaia.
Uma outra alegoria ocorre quando a câmera saí da cena de uma moça sendo estuprada e corta para a imagem de uma velha sendo abandonada em meio a zombarias dos soldados. É o mal permeando um ciclo vital por completo.
O exemplo maior de inversão dos papeis ocorre no final. Alguns soldados nazistas são presos por guerrilheiros soviéticos, inclusive os chefes, e sob a mira de armas começam a apelar para o absurdo novamente tentando salvar suas vidas. O chefe do soldados, ou seja, aquele que concordou com os estupros, com as torturas e com as mortes, afirma que nunca fez mal a ninguém e que estava apenas obedecendo ordens, enquanto outro comandante se posiciona a favor do nazismo afirmando ferozmente que nem todos os povos têm direito ao futuro.
Todos os nazistas presos são fuzilados. Um integrante da guerrilha soviética aparece com uma tocha acesa dando a entender que se vingará, mas assim que ele vê os mortos, desiste de queima-los. Compreende a diferença?
Florya, ao lado de um novato [que se assemelha muito ao jovem que ele era no começo do filme], vê um retrato de Hitler boiando numa poça. É então que, pela primeira vez, ele utiliza sua arma - a mesma que ele encontrou no início. O diretor atinge o ápice de sua genialidade: a medida em que o jovem através de uma interpretação surpreendente vai atirando no retrato do ditador, imagens reais de Hitler e da segunda guerra vão retrocedendo em velocidade rápida com trilha sonora do Requiem de Mozart. Requiem é uma música tipicamente funerária e Mozart é utilizado em outras cenas do filme. Abaixo o link com essa cena final clássica e genial. Ela faz muito mais sentido depois que você assiste o filme inteiro!
As imagens reais cessam quando aparece uma foto de Hitler criança e então, Florya chora em silêncio com o terror estampado em sua cara. A imagem infantil de Hitler retrata a esperança e ao mesmo tempo sinaliza o poder que o contexto social de uma época tem de alterar uma pessoa. Hitler foi produto da devastação humana causada pelo capital. A expansão do capitalismo no século XIX, a interferência econômica e territorial no eixo França-Inglaterra, a paz armada da primeira guerra mundial, as consequências trágicas para a Alemanha, o caos instaurado pela inflação e uma massa de pessoas com uma tendência fácil à dominação ideológica: esse era o cenário quando Hitler chegou ao poder depois de um "golpe".
Agora temos que refletir sobre o nosso presente: o quão banal está a sociedade em que vivemos? Quem são os jovens que estão sendo assassinados pela polícia? O que a mídia retrata? Do que o humor brasileiro zomba? O que a bancada evangélica argumenta?
Vá e veja.
Obs.: todo a gratidão do universo ao meu professor Lúcio Menezes.
PARA LER: Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal Hannah Arendt»
Fonte, http://obviousmag.org/
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