«LENINEGRADO OU A FOME COMO ARMA
Hitler nunca quis conquistar o berço do bolchevismo pela força das armas, mas antes matá-lo de inanição. A cidade resistiu quase 900 dias ao cerco e perdeu perto de metade da sua população
Cheira a caramelo. O aroma do açúcar carbonizado torna a atmosfera espessa. Noutra ocasião, Tanya Savicheva poderia ter ficado numa doce expetativa. Apesar dos seus 11 anos, a rapariga relaciona logo o odor com as colunas de fumo mais volumosas que vê erguerem-se a sul e se juntam no céu, formando a nuvem negra que cobre a cidade de um crepúsculo precoce.
Leninegrado – a antiga São Petersburgo – tem sido, desde o início do mês, alvo de ataques ocasionais de artilharia e de raides aéreos isolados. Mas este final de tarde de 8 de setembro de 1941 é diferente.
Pontualmente, às 18 horas e 55, um enxame de 27 bombardeiros Junker abate-se sobre a cidade e, numa primeira vaga, despeja 6 327 bombas incendiárias.
Com a mesma pontualidade teutónica, regressará uma hora depois, num voo baixo ao ponto de se ver o brilho metálico das hélices, para atacar um alvo específico: os armazéns onde estão guardadas as reservas alimentares.
É um dia que ninguém vai esquecer tão cedo – o primeiro de 872 de cerco à segunda maior cidade da União Soviética.
Horas antes, os alemães lograram a tomada de Schisselburg, na margem oriental do rio Neva, cortando as comunicações terrestres de Leninegrado com o resto do mundo.
A norte encontram-se as tropas finlandesas, a sul e oeste as alemãs. A ligação da cidade com o hinterland soviético só pode ser feita através do imenso lago Ladoga, que se estende a leste. Mas essa é uma via de comunicação difícil, arriscada e pouco explorada enquanto tal.
Os armazéns Badaev ocupam um terreno de 16 118 metros quadrados na zona sul da cidade e são agora pasto das chamas.
Leninegrado preparou-se, desde o início da invasão da União Soviética, a 22 de junho, para se defender de um ataque, mas as autoridades cometeram erros atrás de erros. Um deles foi a concentração do grosso das parcas reservas alimentares naquele conjunto de velhos barracões de madeira não distantes uns dos outros mais do que 7,5 metros, e sobre os quais os alemães lançam nesse ataque e noutro, dois dias depois, um total de 700 bombas de 250 e 500 quilos.
Leninegrado é uma cidade relativamente plana. Ao saírem dos abrigos antiaéreos, as pessoas veem como carne, cereais, banha e manteiga se esfumam literalmente à frente dos olhos – uma imagem dolorosa para quem desde a imposição dos racionamentos, em julho, já se levanta da mesa com fome.
O apetite do fogo é voraz mas lento. Demora várias horas a consumir 3 mil toneladas de farinha e a derreter 2 500 toneladas de açúcar. O caramelo encharca o solo, cobrindo-o, ao arrefecer, com uma crosta crocante. Quem sobreviveu para contar como foi o bloqueio de Leninegrado falará da venda no mercado negro, a preços exorbitantes, de pedaços dessa terra impregnada com açúcar derretido. São bizarras e ao mesmo tempo verosímeis as histórias de uma cidade onde 3 milhões de pessoas (2,5 milhões de moradores e cerca de 350 mil deslocados das regiões ocupadas pelos alemães) foram literalmente condenadas a morrer à fome.
A ciência da fome
No mesmo dia, nos arredores de Berlim, Ernst Ziegelmeyer, um conceituado perito do Instituto de Nutrição de Munique, encontra-se com altos quadros do Estado-Maior da Wehrmacht. Os generais convocaram-no para uma reunião e pedem-lhe ajuda. O avanço sobre Leninegrado estacou, contam-lhe, e, agora, é preciso bloquear a cidade. Entregam-lhe pastas com documentação estatística – estimativas da população, a quantidade de alimentos armazenados e as temperaturas médias na cidade durante o inverno que se avizinha. Exigem que faça cálculos; que forneça previsões. E que dê respostas urgentes: o que acontece a uma população privada da ingestão de proteínas e gorduras? Qual o tempo de cerco necessário para a cidade morrer à fome? Na verdade, a intenção de vergar a cidade-berço do bolchevismo pela fome não tem que ver com a relativa dificuldade sentida pelos alemães de avançarem contra ela. Há muito que a ideia paira nas mentes da liderança nazi, crescentemente criativas na conceção de novos métodos para aplicar na sua guerra de extermínio (Vernichtungskrieg) contra os povos da Europa de Leste.
A 16 de julho, numa reunião com o seu círculo mais estrito, Adolf Hitler falou dos planos para Leninegrado. A ata, presumivelmente preparada pelo seu secretário pessoal, Martin Bormann, revela: «Os finlandeses querem a área em torno de Leninegrado; o Führer vai arrasar Leninegrado e, depois, entrega-a.» Mas será da compulsão para a escrita de Joseph Goebbels que retiramos informações mais detalhadas. Num estilo lacónico, o número três do regime e ministro da Propaganda narra, no sei diário, um encontro de 18 de agosto com o Führer. Goebbels visitou Hitler no Covil do Lobo (Wolfschanze), o quartel-general para a Frente Leste, em Rastenburg, na Prússia Oriental (a atual Ketrzyn polaca). O ditador regozija-se com o avanço rápido das suas tropas na Rússia e partilha os seus planos para o futuro da metrópole que prefere designar pelo nome antigo. «O Führer não está preocupado com a ocupação de cidades em particular», escreve Goebbels. «Ele quer evitar baixas entre os nossos soldados. Por isso já não tenciona tomar Petersburgo pela força das armas, mas antes submetê-la pela fome.»
Quando estiver isolada, o plano é usar a artilharia e a Luftwaffe para bombardear os meios de apoio à população».
Ziegelmeyer nem de 24 horas precisa para apresentar resultados aos generais.
Ao fim de um mês de cerco, estima o nutricionista, os soviéticos terão de introduzir uma ração diária de pão de 250 gramas por pessoa. Será, afiança, fisicamente impossível alguém sobreviver durante um período prolongado com tal ração. Não vale a pena arriscar a vida de soldados alemães na conquista da cidade. Os leninegradenses morrerão na mesma. O que é preciso é não deixar ninguém sair da cidade. Quantos mais lá estiverem, mais depressa morrerão.
Enquanto Ziegelmeyer disserta no Estado-Maior sobre calorias e os efeitos da conjugação de epidemias e inanição numa população cercada, as autoridades de Leninegrado estão prestes a reduzir novamente as rações de pão. A distribuída às crianças com menos de 12 anos, como Tanya, passará daí a dias a 250 gramas, menos 100 do que em julho, quando começaram os racionamentos.
«Não devemos aborrecermo-nos a exigir a capitulação de Leninegrado. A cidade pode ser destruída por um método quase científico», escreve Goebbels, na entrada de 10 de setembro do seu diário.
O próprio Hitler explicitará, por esses dias, a cientificidade do seu método numa conversa com Otto Abetz, embaixador alemão na França de Vichy. «Petersburgo», diz o Führer, «é o ninho nocivo que durante tanto tempo jorrou veneno asiático para o Báltico. Por isso, tem de desaparecer da face da Terra.» E explica como a erradicará: «Com a cidade isolada, bastará bombardeá-la, destruindo as fontes de água e de energia, negando à população o que é necessário para sobreviver.» As ordens que transmite aos seus chefes militares são claras: estão proibidos de aceitar a capitulação de Leninegrado ou Moscovo, mesmo que os soviéticos se rendam.
O «desejo do Führer» é transmitido através da cadeia de comando. Assim, uma ordem secreta do chefe do Estado-Maior Naval aos seus subordinados reza que «o Führer decidiu apagar São Petersburgo da face da Terra. A existência desta grande cidade deixará de ter interesse depois da destruição da União Soviética. A Finlândia também disse que a existência desta cidade na sua fronteira é indesejável».
Essa esclarecedora nota do almirante Erich Raeder, datada de 29 de setembro e, usada nos julgamentos de Nuremberga como prova da premeditação do genocídio, dá conta das intenções alemãs: a cidade deve ser destruída, recorrendo a uma barragem de artilharia com armas de calibres variados e a bombardeamentos aéreos prolongados.
A vida da população e o seu aprovisionamento é visto por Raeder como «um problema que não pode nem deve ser decidido por nós [a Wehrmacht]».
«Nesta guerra, não estamos interessados em preservar nem uma parte da população desta metrópole.»
A normalidade possível
Pouco depois do fecho do cerco chega o outono. Como sempre, nesta altura do ano, as acácias da Bolshoi Prospekt, a «Grande Avenida», estão bonitas.
A cidade tenta manter uma vida normal, dentro do que é possível. Mas muitas rotinas foram alteradas por manobras militares no centro, sirenes antiaéreas, monumentos encaixotados e, claro, cartões de racionamento.
Mas a cidade resiste nem que seja simbolicamente.
A 17 de setembro, o compositor Dmitry Shostakovich anuncia aos seus conterrâneos, através da rádio: «Ainda há uma hora completei os dois principais andamentos da minha nova e grande obra sinfónica.» A normalidade dita também que nesta data se dá início ao ano letivo. Tanya vai a pé para a escola. Sai de casa, na segunda «linha» da Ilha Vasilyevsky (aqui as ruas vão no sentido sul-norte e são constituídas por duas «linhas» cada; as avenidas têm nome e correm no sentido este-oeste). A escola é já ali à frente, num edifício encarnado de quatro andares. A sala da turma de Tanya é no terceiro.
Faltam vários colegas do ano anterior. Foram evacuados, comenta-se. Dos cerca de 3 milhões de leninegradenses, meio milhão, sobretudo crianças, conseguiu sair da cidade antes do cerco.
Tanya pode ter estudado pouco naquele verão, mas a verdade é que aprendeu muitas coisas novas que não vêm nos livros. Quando começou as aulas, já sabia porque era preciso cobrir as janelas com grelhas de fita gomada e conhecia de cor o significado de cada toque de sirene. Aprendeu muito mais depois de ver o projeto familiar de férias no campo aniquilado, logo em junho, pelo ataque alemão contra a União Soviética.
A família Savichev mora toda num prédio de três pisos, na esquina com a Bolshoi. No segundo andar habitam Tanya, a mãe, as suas duas irmãs, os dois irmãos e a avó. No apartamento imediatamente abaixo, dois tios solteiros.
Todos, exceto o irmão Misha, que já tinha saído de Leninegrado, decidiram ficar para trabalhar na preparação da defesa da cidade, da qual os alemães se aproximavam a uma velocidade vertiginosa. Muitos recusaram abandonar a sua cidade.
O músico Shostakovich, que já naquela altura era uma celebridade internacional, foi instado a fazê-lo pelas autoridades. Preferiu ficar e defender Leninegrado. Por isso quis alistar-se na milícia. «Estou pronto a pegar em armas.» Os militares recusaram-no, mas permitiram-lhe que se tornasse bombeiro. A revista americana Time há de retratá-lo na capa, daí a um ano, com um capacete antiquado e o título Bombeiro Shostakovish.
Os Savichev também deram o seu contributo: a mãe, uma modista viúva, costurou fardas para a tropa, o irmão Leka trabalhou numa serração no Almirantado, as irmãs Zhenya e Nina na fábrica de munições e na construção de defesas, os tios ofereceram-se para as antiaéreas. Tanya cavou trincheiras e preparou bombas para serem acionadas quando os alemães ocuparem a cidade.
Mas não é essa a intenção deles. São outros os desejos do Führer. As tropas alemãs estão proibidas de aceitar a rendição da cidade. Nenhum soldado alemão deve entrar nela nem nenhum dos seus moradores dela sair.
«Pelo nosso fogo devemos forçar o recuo de todos os que tentem deixar a cidade através das nossas linhas», refere uma ordem do comando supremo da Wehrmacht, assinada a 7 de outubro.
Ziegelmeyer tem razão. Ninguém arrisca prever que Leninegrado aguente muito tempo. Nem os soviéticos, cujo inventário das reservas alimentares da cidade, feito a 10 de setembro, é mais do que precário: farinha e cereais chegam para 35 dias, as massas para 30, a carne para 33, gorduras para 35, açúcar e doces para 60.
A fome alastra à medida que os dias, cada vez mais curtos e frios, passam. Entre 2 de setembro e 20 de novembro, as rações de pão são reduzidas cinco vezes.
A partir de outubro, a polícia dá conta nos seus relatórios do aparecimento de cadáveres nas ruas. Mas Estaline recusa a ideia de uma ponte aérea para alimentar a cidade sitiada. Só entre 14 e 28 de novembro é que o ditador soviético se compadece e autoriza de 30 a 50 voos diários para fornecer um total de 1 200 toneladas de alimentos altamente calóricos.
Ao mesmo tempo, a escassez de combustíveis reduz brutalmente a produção de energia e condiciona o uso de máquinas.
O inverno ártico abate-se sobre a cidade com temperaturas abaixo dos 30 graus negativos e os stocks de carvão esgotam-se. As árvores dos parques e das avenidas transformam-se em lenha para aquecimento, depois as mobílias e, a seguir, os livros. Tanya sacrifica o seu diário.
A mãe consola-a. Dá-lhe a agenda telefónica da irmã Nina, que um dia não regressou do trabalho e a família julga morta. Afinal, tinha sido evacuada com outras crianças, através do lago Ladoga, mas isso só se saberá depois da guerra.
‘Todos morreram. Só resta a Tanya’
Em novembro, as poucas embarcações em circulação no lago param por causa do gelo. A cidade precisa de manter aquela via de comunicação aberta, a todo o custo. Por isso lança-se na construção da «Estrada da Vida», que se inicia na margem ocidental e se prolonga por 30 quilómetros até à margem oposta. O trabalho é terrivelmente complicado – as tempestades de neve, as brechas no gelo e os bombardeamentos contínuos aliam-se para o dificultar.
Mas mesmo depois de construída, a rota é perigosa. Só na inauguração, no início de dezembro, perdem-se 150 viaturas.
Os motores falham facilmente com temperaturas tão baixas e centenas de camiões são engolidos pelas fendas que se abrem no gelo. Para contornarem esse perigo, têm de acender as luzes. Mas isso só os torna um alvo fácil para os aviões e artilharia nazis. O caminho está ladeado por carcaças de camiões. É o auge daquilo a que a historiografia russa chama «período heroico» do cerco a Leninegrado, o inverno de 1941-42.
As pessoas aquecem-se como podem.
Pela cidade vagueiam os semivivos apáticos, de pele e osso. Os olhos são encovados e tristes. A cidade cobriu-se de neve. Os seus habitantes, de roupas grossas e escuras, vagueiam pelas ruas.
São seres quase inanimados e encurvados arrastando atrás de si trenós, como um fardo insuportável. Transportam crianças moribundas, feixes de lenha ou o cadáver de algum parente a caminho do cemitério, onde o coveiro já nem tem forças para afundar a picareta na terra gelada. Muitos deixam os mortos em casa, onde nos tetos se formam estalactites de gelo. Pelo menos, enquanto o inverno durar não apodrecem e, ocultando a morte, sempre dá para usar as suas senhas de racionamento. Em Leninegrado morre-se de fome, rouba-se por fome e mata-se por fome. Ocorrem assaltos e pilhagens. O regime mostra-se impiedoso com infratores e críticos.
As execuções estão na ordem do dia.
Quanto a números, não há consenso dos historiadores, mas situam-se algures entre os 700 mil e o milhão e meio de mortos, durante todo o cerco que só terminará em janeiro de 1944, quando os alemães começam, finalmente, a retirar para só parar em Berlim.
Os meses do inverno de 1941-42 são os mais graves. Os relatórios do NKVD (serviços secretos) dão conta de 43 detenções por canibalismo em dezembro de 1941 – um número que chega aos 612 em fevereiro e que só começa a declinar com a primavera.
É nesse inverno que Tanya pega na agenda telefónica que a mãe lhe deu e escreve: «Zhenya [a irmã] morreu a 28 de dezembro às 12 horas. 1941.» A caligrafia denuncia um enorme estado de fraqueza.
Até à morte da mãe, a 13 de maio de 1942, a criança registará ali o óbito de todos os seus familiares. «Os Savichev morreram. Todos morreram. Só resta a Tanya», conclui a miúda.
Em dezembro, passam através da «Estrada da Vida» 700 toneladas diárias de víveres. Nos meses seguintes, 1 200. É uma gota de água num mar de necessidades, mas que dá à cidade o que ela mais precisa, além de comida: uma réstia de esperança.
Depois do longo e tenebroso inverno, vem a primavera. Com ela chega o degelo e o risco de doenças. A população desnutrida faz um esforço sobre-humano.
Organizam-se brigadas de limpeza que removem o lixo e enterram os mortos.
Faz-se uma campanha para o cultivo de vegetais. Distribuem-se sementes e adubos.
Antigos jardins transformam-se em hortas comunitárias e surgem as hortas caseiras. Basta virar uma mesa ao contrário, retirar-lhe as pernas e encher o fundo do tampo com terra. Aí semeiam-se rabanetes e cenouras. As ramas usam-se para saladas e sopa. Entretanto, a natureza regenera-se e também contribui: urtigas, casca de carvalho e caruma de pinheiro revelam-se poderosas fontes de nutrientes e vitaminas.
A partir de meados de abril, a camada de gelo do lago Ladoga torna-se perigosamente fina para se poder continuar a fazer a travessia. Ainda assim, as rações melhoram e aumentam.
Os espíritos da cidade animam-se, muitas vezes com ocorrências aparentemente triviais como a reparação dos geradores de eletricidade, permitindo a circulação dos carros elétricos.
Música contra os canhões
Leninegrado responde ao cerco mantendo a laborar, mesmo durante o período mais amargo do inverno, várias indústrias como os estaleiros do Almirantado ou a fábrica Kirov. As universidades e institutos científicos mantiveram-se em atividade: concluíram os seus cursos universitários durante o cerco 2500 estudantes.
Os teatros e os museus reabriram na primavera e a Rádio Leninegrado nunca parou de transmitir.
As notícias que vinham do exterior também eram animadoras. Shostakovich, que acabou por ser evacuado a contragosto, concluiu a obra de que falara na rádio – a 7ª Sinfonia, que dedica à população de Leninegrado. Em março, a obra estreia em Kuibyshev, a cidade para onde o poder soviético se transferiu receando a queda de Moscovo, também ela cercada. A sinfonia não tarda a correr mundo. É microfilmada e levada, via Teerão, para Londres, onde estreia em junho. Um mês depois, será conduzida por Arturo Toscanini em Nova Iorque.
Em julho, um avião vindo de Kuibyshev traz as partituras para a Leninegrado cercada. Onde o maestro Karl Eliasberg tenta, desde março, reunir como pode os músicos para um concerto. Tem 25, quando precisa de 80. A grande debilidade física dos músicos quase impossibilita os ensaios. No primeiro, com uma duração de apenas 20 minutos, o trompetista não arrancou uma nota do seu instrumento. «Falta-me a força nos pulmões», queixou-se. Nem ele nem o maestro desistiram.
O esforço é dramático, mas é imperativo estrear a obra a 9 de agosto, a data anunciada meses antes pelos alemães para a ocupação definitiva da cidade.
A sala da Filarmónica enche-se. Junto das bilheteiras formaram-se filas maiores do que as que se podem ver à porta das padarias, pois nem só de pão vive o homem.
Milhentas luzes brilham e, apesar do calor estival, os músicos compareceram de sobretudo e mitenes – diz-se que quando se está a morrer de fome se sente permanentemente frio. Por fim, Eliasberg pode anunciar (através de uma gravação): «Este concerto é testemunho do nosso espírito, da nossa coragem, da nossa prontidão para combater. Ouçam, camaradas!»
E Leninegrado ouve. O concerto, transmitido para toda a cidade através de altifalantes e para todo o país através da rádio, chega também aos alemães, que àquela hora ainda apanham os cacos provocados por uma violentíssima barragem de artilharia soviética, destinada a mantê-los ocupados enquanto decorresse a apresentação.
No final, instala-se um silêncio profundo na sala. As pessoas levantam-se e aplaudem, chorando. «Toda a cidade reencontrou a sua humanidade», recordará, mais tarde, o maestro. Reencontrou também a esperança e abriu fendas na convicção do inimigo de que seria possível vencer a cidade. Daí até às primeiras brechas reais no cerco alemão foi apenas uma questão de meses. De duros meses de resistência.
Nesse verão, ao percorrer a Ilha Vasilyevsky à procura de crianças órfãs, uma brigada de raparigas do Komsomol (a organização de juventude do Partido Comunista), encontra Tanya Savicheva prostrada em casa. A menina desnutrida está junto ao fogão, numa apatia profunda.
Agarra-se, como que em transe, a um vaso com uma planta murcha à qual tenta restituir a vida. Fortemente debilitada, é levada para um lar e, em agosto, evacuada da cidade, juntamente com outras 140 crianças. Todas sobrevivem à guerra, exceto ela, que nunca recuperou totalmente. Morreu em maio de 1944, de tuberculose intestinal. Tanya não resistiu às sequelas da desnutrição.
Mas muitos dos que sofreram o cerco sobreviveram-lhes para grande espanto dos alemães. Depois da guerra, Ernst Ziegelmeyer conheceu um colega russo sobrevivente do bloqueio e não parou de o questionar: «Como é que vocês aguentaram? Como conseguiram? É impossível! Escrevi uma dissertação a dizer que é impossível viver com aquela ração.»»
(Artigo originalmente publiado na revista Visão História, n.º 21Caderno,1 de Setembro de 2013)
Sem comentários:
Enviar um comentário